“Não importa o que fizeram com você”, disse Jean-Paul Sartre, “importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você”. Fosse vivo, o existencialista francês encontraria na ativista paulistana Sabrina de Campos Bittencourt umas das histórias mais interessantes a encaixar-se em sua frase famosa.
De família mórmon, Sabrina foi abusada desde os 4 anos por integrantes da igreja frequentada pelos pais e avós. Aos 16, ficou grávida de um dos estupradores. Abortou. Hoje, aos 37, mãe, milita numa causa ao mesmo tempo universal e particular: labuta na organização e preparação de denúncias contra líderes religiosos abusadores, para os quais seria melhor evitar a incontornável ideia do santo do pau oco.
De sua parte, prefere “psicopata” e “predador sexual”, entre outras menos lisonjeiras. Bittencourt é a mulher por trás das centenas de denúncias de abuso contra João de Deus e Prem Baba. Sob sigilo, prepara o material a desmascarar outros 13 gurus espirituais brasileiros.
Envolveu-se na busca por crianças desaparecidas no Brasil, lidou com jovens carentes acometidos de problemas renais, trabalhou com crianças cegas, surdas e mudas em países da África, defendeu indígenas ameaçados no México.
Foi eleita por unanimidade para um posto de direção no Partners of the Americas, uma das maiores organizações de voluntários do mundo. Especializou-se no então nascente conceito do empreendedorismo social, aquele que permitiu ao Terceiro Setor livrar-se do assistencialismo e ganhar dinheiro para o financiamento de suas atividades.
Em 2013, assoberbada por mais de 30 projetos sociais em quatro continentes, foi atingida por uma amnésia que lhe apagou 11 anos de memórias. Virou, por isso, personagem do Fantástico.
Bittencourt é uma das criadoras do “movimento” Coame, sigla para Combate ao Abuso no Meio Espiritual, plataforma que concentra denúncias de violações sexuais cometidas por padres, pastores, gurus e congêneres.
Craque na lida com o mundo virtual das redes e com o modus operandi do ativismo real, atraiu mulheres dispostas a contar suas experiências de assédio com Prem Baba e João de Deus. Com o imprescindível apoio das Vítimas Unidas de Roger Abdelmassih, de ativistas espalhados pelo mundo e de jornalistas brasileiros que investigavam tanto o incensado guru quanto o poderoso curandeiro, organizou depoimentos, investigou crimes paralelos, articulou e segue articulando com imprensa e promotores.
Aprendiz de Chico Xavier, João de Deus está preso desde o domingo 16, e contra ele se acumulam até o momento 506 denúncias.
Dono de sete fazendas, atuante no garimpo de pedras preciosas, teve sua casa em Abadiânia (GO) revirada pela Polícia na quarta-feira 19. Foram encontradas uma quantidade vultosa de dinheiro vivo e armas ilegais.
Localizada no meio do caminho entre Brasília e Goiânia, a pequena cidade de Abadiânia é a “cidade de João de Deus”. Com pouco mais de 15 mil habitantes, tudo nela gira, ou girava, em torno da Casa Dom Inácio de Loyola, onde o médium João Teixeira de Faria supostamente operava milagres em “cirurgias” toscas que abdicavam de anestesia.
Com a prisão de João de Deus, os moradores de Abadiânia temem ver a localidade transformada em cidade fantasma, afetando seus negócios. Culpam Sabrina pelo repentino ocaso. Ela diz: “Não tem um Cristo lá que não sabia dos malfeitos do médium. São coniventes”.
Muda de casa a cada 10 ou 12 dias, muda de país sem registrar o ingresso na fronteira.
A seguir, trechos do depoimento da ativista a CartaCapital. A íntegra está na edição impressa de número 1035, nas bancas até a sexta-feira 28.
Abusada pelos religiosos
“É algo endêmico essa absurda quantidade de líderes de várias religiões que abusam de crianças, jovens e, principalmente, mulheres. Desde os quatro anos fui abusada diversas vezes pelos mórmons da igreja que frequentávamos, contra os quais não foi tomada nenhuma providência. O meu caminho foi traçado a partir da dor do outro e da minha dor. Eu sabia desde sempre que tinha privilégios que outros não tinham. Então, para poder me curar dessas dores, fiz trabalho social intensamente por 20 anos.”
O modus operandi das denúncias
“As coisas que faço são muito organizadas. As denúncias contra Prem Baba e João de Deus deram certo porque fui vendo as variáveis de cada um dos grupos. O que interessa para as vítimas? Falar. Aos policiais? Descobrir outros crimes, entre aspas, mais importantes. Para os jornalistas, o furo. Então vou pegando as informações de pessoas de grupos vulneráveis, organizo. Marco o ritmo, o tom e o código ético de como tratar as vítimas daquele líder espiritual.”
Treze novos abusadores
“Jamais imaginei que a partir do lance do Prem Baba eu ia conseguir receber 103 relatos de 13 líderes espirituais diferentes a partir de um único post no Facebook. Com João de Deus, estamos tratando de uma elite, de celebridades, de pessoas que viajam para a Índia, que podem ficar três meses em Abadiânia apenas sendo voluntária. Estrategicamente, vou apresentando os mais favorecidos. Agora, quando consigo mostrar para a sociedade que mesmo João de Deus, que há 40 anos é o intocável, que já mandou matar uma porrada de gente, que é multimilionário, e mesmo assim a gente conseguiu desmascarar, aí as mulheres que são abusadas por pastores e padres, mulheres negras de uma camada menos favorecida, elas vão criar coragem para falar.”
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