Uma das frases mais conhecidas da sabedoria popular diz que “ os
melhores perfumes estão contidos nos menores frascos.” A frase não está neste
livro, que de certa maneira a comprova. Um conjunto de máximas com aparência de
mínimas. O Avesso das coisas revela
um poeta que tira do cotidiano não apenas o lírico mas também o curioso, o imprevisível, o incomum.
Com a mesma intensidade de poeta, o humorista ou filósofo Drummond
mostra como: bater à porta errada costuma resultar em descoberta”. Seu modo
pessoal de ver as coisas pelo lado avesso resulta num livro delicioso, escrito
à maneira de dicionários, com as definições mais improváveis e, por isso mesmo,
mais verdadeiras.
Vejamos alguns exemplos:
ALMA- Prisioneira do corpo, a
alma vive em guerra com o carcereiro.
AMANHECER- O amanhecer é uma festa
para convidados que estão dormindo.
AMIZADE- é um meio de nos
isolarmos da humanidade cultivando algumas pessoas.
AMOR- Amar sem inquietação é
amar sem amor.
ARTISTA- o artista não sabe que o
mundo existe fora da arte; por isso atreve-se a criar.
AVENTURA- a aventura não está nos
fatos exteriores, mas na capacidade de figurá-los e vivenciá-los.
BEM- Há boas ações que se praticam porque não foi
possível deixar de praticá-las.
BONDADE- Todo mundo é bom quando
não usa a cabeça.
BRASIL- O Brasil é um país novo
que se imagina velho, e um país velho que se supõe novo.
CANDIDATO- A confiança no candidato
deve ser temperada com a desconfiança no eleito.
CÃO- o fato de o cão ser fiel
ao homem não quer dizer que ele aprove as ações do dono.
CARIDADE- A caridade seria perfeita
se não causasse satisfação em quem a pratica.
CASAMENTO- O casamento indissolúvel
é dissolvido pelo divórcio, pela morte e pelo tédio.
CHUVA- A chuva desmancha
prazeres e cria outros, de solidão e intimidade.
CIÚME- O ciúme, filho do amor,
torna-se parricida.
CONFIANÇA- A confiança é ato de fé,
e esta dispensa raciocínio.
CORAÇÃO- O bom coração não sente que o é; se sentisse
perderia a qualidade.
CRONISTA- O cronista serve-se às
vezes de fatos imaginários para zombar dos reais.
DEMOCRACIA- A democracia é temperada
pelo dinheiro e garantida pelas armas até certo ponto.
DESCOBERTA- Bater à porta errada
costuma resultar em descoberta.
DESEJO- A vida é alimentada pelo
desejo, que finalmente a corrói.
DESENGANO- O novo desengano consegue
nos enganar fazendo crer que é o último.
DEUS- Há certo sadomasoquismo
na ideia de Deus deixar-se crucificar pelos homens que ele criou.
DIREITOS DO MOMEM- Os direitos do homem são
muitos, e raro o direito a gozar deles.
DITADURA- o ditador não precisa
atrasar o relógio; ele mesmo atrasa a História.
DONJUANISMO- Dom Juan inveja aqueles
que, sem donjuanismo, conquistaram uma só mulher.
EDUCAÇÃO- A educação visa a
melhorar a natureza do homem, e isto nem sempre é aceito pelo interessado.
EGOÍSMO- Somos irmãos do próximo,
mas primeiro somos irmão de nós mesmos.
ENGANO- Enganamos aos outros, porém não tanto quanto
a nós mesmos.
ESQUECIMENTO- o esquecimento procura fabricar
uma rede confortável para a insônia.
EXPERIÊNCIA- Os velhos abstêm-se de
utilizar sua experiência , preferindo recomendá-la aos novos.
FANTASMA- Passamos a acreditar em
fantasmas quando começamos a nos parecer com eles.
FÉ-A fé remove montanhas,
substituindo-as por abismos.
FELICIDADE- Ser feliz sem motivo é a
mais autêntica forma de felicidade.
FRATERNIDADE- O mal da fraternidade é elevar ao infinito o
número de nossos irmãos.
FUTURO- O futuro pertence a Deus,
que não sabe onde o escondeu.
GERAÇÃO- Uma geração transmite
suas celebridades à geração seguinte, que não tem espaço para recebe-las, pois
está preparando as suas próprias.
GOVERNO- Os governos seriam
perfeitos se durassem apenas o dia da posse.
GUERRA- Admitir que há guerras
justas é o mesmo que admitir a existência de injustiças justas.
HARMONIA- A ideia de harmonia é
chocante em um mundo de seres desarmônicos.
HISTÓRIA- A parte de romance que a
História contém é visível; menos visível é a parte histórica.
HOMEM- Nada do que é humano me é
alheio, mas nem tudo me apraz.
HONRA- a honra não é definível,
mas determina atitudes e consequências que todo mundo julga.
HUMANIDADE- A humanidade atravessa um
período crítico: existem mais salvadores do que pessoas a salvar.
HUMORISMO- O humorismo é a aptidão
para despertar nos outros a alegria que não sentimos.
IGNORÂNCIA- É virtude ser ignorante
quando os sábios são perversos.
IMAGINAÇÃO- A imaginação é a
fortaleza da liberdade para quem vive no cárcere.
IMPERFEIÇÃO- Geralmente a imperfeição
vive satisfeita consigo mesma.
IMPOSTO- O imposto tem este nome
porque, de outro modo, ninguém o pagaria.
INGRATIDÃO- A ingratidão é o imposto cobrado à
generosidade.
INIMIGO- Nosso inimigo é, em
geral, a projeção do nosso lado negativo.
INVEJA- os invejosos se invejam.
INVENÇÃO- Às vezes, inventar é mais
fácil do que nos adaptarmos ao inventado.
JARDIM- O jardim, convite à
preguiça, exige trabalho infatigável.
JORNAL- Pelas notícias de ontem,
publicadas hoje, devemos temer o jornal de amanhã.
JUSTIÇA- A justiça é tão falível
que ela própria se encarrega de reformar suas sentenças, nem sempre para
melhor.
KAFKA- Kafka intuiu a lógica do
absurdo, sistema tão válido quanto outro qualquer.
LADRÃO- Se a ocasião faz o
ladrão, daí por diante ele a dispensa.
LEI- A quase totalidade das
leis, como sucede aos espermatozoides, não é aproveitável.
LEITURA- Leitura é fonte
inesgotável de prazer, mas a maioria não tem sede ou não sabe como
dessedentar-se.
LIBERDADE- A liberdade é uma
provocação à tirania, e às vezes consegue vencê-la.
LITERATURA- A literatura fazia-se com
manifestos; hoje faz-se sem literatura.
LOUCURA- A loucura é diagnosticada
pelos sãos, que não se submetem a diagnóstico.
LUA- Ainda se ama a Lua à
maneira dos gigolôs.
LUCIDEZ- Somos lúcidos na medida
em que perdemos a riqueza de imaginação.
LUTA- Só é lutador quem sabe
lutar consigo mesmo.
MANIQUEÌSMO – O maniqueísmo se
tornaria fascinante se trocasse os sentidos do bem e do mal.
MASTURBAÇÃO- A masturbação é uma forma
econômica de praticar o sexo.
MEDO- O medo une mais os homens
do que a coragem.
MEMÓRIA- A memória cola fragmentos
de várias porcelanas no mesmo vaso.
MENTIRA- A todo momento estamos
pregando mentiras a nós mesmos, e acreditamos nelas.
MILAGRE- O milagre existe na
medida em que acreditamos nele, não porém na medida em que dele necessitamos.
MORTE- Surpreendemo-nos com a
morte como se ela não fosse o único fenômeno absolutamente previsível.
MUNDO- Se o Inferno existir,
este mundo deve ser o seu vestibular.
NAÇÃO- A soberania das nações
alcança o espaço aéreo e o marítimo; só não alcança o coração dos homens.
NÁDEGA- A nádega tem uma
linguagem diferente da do resto do corpo.
NATUREZA- A natureza não faz
milagres; faz revelações.
NOIVADO- Vestibular que, mesmo com
aprovação, não garante o curso.
NUDEZ- Há uma distinção óbvia
entre o nu da moda e o nu da miséria.
OBEDIÊNCIA- A obediência é uma virtude
sem prazer.
OLHO- O olho é fiscal da
realidade e sua vítima.
ORAÇÃO- Há os que rezam movidos
pela fé e os que rezam movidos pelo costume.
ORGASMO- O grito do orgasmo é
espontâneo, mas o orgasmo é elaborado.
PACIÊNCIA- Se precisamos de
paciência para nos suportarmos, quanto mais para suportar os outros.
PAÍS- O país excessivamente
grande perde a noção de grandeza e resigna-se a ser dirigido por homens
pequenos.
PAISAGEM- A paisagem vista em sonho
reaparece na realidade, sem nos reconhecer.
PALAVRA- A palavra e o ato vivem
em conflito, e este geralmente vence.
PASSADO- Pagamos o débito do
passado endividando o futuro.
PÁTRIA- A pátria recompensa
regiamente os heróis, desde que sejam governistas.
PAZ- A paz é um estado ideal
que tanto produz insatisfação e guerra como tédio.
PECADO- O prazer que se extrai de
certos pecados vale bem a penitência futura.
PÊNIS- Se o pênis contasse tudo
que sabe, a moral seria outra.
PILATOS- As mãos de Pilatos
ficaram menos limpas depois que ele as lavou.
POBREZA- Pobreza bem explorada é
forma de riqueza.
POESIA- A poesia é um jogo em que
os poetas manejam cartas desconhecidas deles próprios.
POLÍTICA- Em politica, 2 e 2 podem
ser 4, mas não é obrigatório.
POVO- É fácil falar em nome do
povo; ele não tem voz.
PRAZER- Prazer dividido é às
vezes prazer solitário a dois.
PRECONCEITO- O homem despido de
preconceitos devia andar nu, para merecer crédito.
PRESENTE- O presente é uma ponte ilusória entre os que
foi e o que virá a ser.
PRISÃO- O preso político sabe que
não é preso comum, isto é, que deve sofrer mais do que este.
PROBLEMA- SE chamamos problema a
uma fechadura enguiçada, não se sabe que nome convém à questão do destino do
homem.
QUESTÃO- O outro lado da questão é
aquele que não enxergamos, ou o único que enxergamos.
RACISMO-Para suprimir o racismo
seria necessário suprimir a noção de raça.
RAZÃO- Ter razão é tão perigoso
que muitos acham conveniente não ter nenhuma.
RELIGIÃO- Os mandamentos da lei de Deus são dez, os pecados
capitais são sete, e as virtudes teologais apenas quatro para tamanha
responsabilidade.
RIQUEZA- Para o avarento, a riqueza não traz felicidade; é a
própria felicidade.
SENSUALIDADE- è agradável pensar que até os elementos minerais do
corpo participam da nossa sensualidade.
SEXO- O sexo é prazer sentido e
transmitido a outro sexo; do contrário não vale o nome.
SOCIEDADE- A sociedade cria
requintes de vestuário e de culinária que dispensam os de espírito.
SOFRIMENTO- O sofrimento é repartido
ao longo da vida e separado por blocos de esquecimento.
SOLIDÃO- A solidão gera inúmeros
companheiros em nós mesmos.
SOL- A arrogância do Sol torna
insuportável contemplá-lo.
SURREALISMO- O surrealismo incorpora à
consciência a negação da consciência.
TARDE- É sentir que as coisas
mudam de forma ao se desprenderem de nós.
TEATRO- Cinema e televisão
divertem; teatro emociona.
TEMPESTADE- A tempestade pode ser a
cólera da natureza contra os agravos que lhe infligimos.
TRADIÇÃO- A tradição é cultuada
pelos que não sabem renová-la.
TRAIÇÃO- Todos traímos um sonho,
um ideal, uma ideia, e não nos sentimos desconfortáveis por isso.
UNIÃO- A união faz a força, que,
aplicada, faz a desunião.
UNIVERSIDADE- A Universidade também
ensina o que já se sabe.
URGÊNCIA- Aquilo que é exigido pelo
nosso desejo, mesmo passageiro.
URINAR- Há em urinar um prazer de
liberação e doação gratuita.
VACINA – Ainda não se descobriu
vacina contra os males de alma
produzidos pelo amor.
VELHICE- A velhice tem atitudes
infantis, sem o encanto da infância.
VERDADE- O corpo da verdade tem
uma pinta em lugar invisível.
VIDA- Vida, aprendizado sem
conclusão de curso.
VINHO- O vinho conduz à verdade,
desde que ele também não seja falso.
VIRGINDADE- Atributo que a natureza
concedeu contar o seu próprio interesse.
VONTADE- Minha vontade é forte,
porém minha disposição de obedecer-lhe é fraca.
VOTO- O voto, arma do cidadão,
dispara contra ele.
VULCÃO- A natureza dá shows em
forma de vulcão.
WAGNER- Os 134 instrumentos da orquestra
desprezam os 130 decibéis do ouvido.
XADREZ- O xadrez permite ao
belicoso dispensar a guerra continuando a travá-la.
XINGAMENTO- O xingamento deixa de ser
ofensivo se consegue ser engraçado.
ZEN – Prática budista que faz
falta a governantes e políticos: exige meditação profunda.
ZERO- Prova convincente da
existência do nada.
“Assim como os antigos moralistas escreviam máximas, deu-me vontade
de escrever o que se poderia chamar de mínimas, ou seja, alguma coisa que,
ajustada às limitações do meu engenho, traduzisse um tipo de experiência
vivida, que não chega a alcançar a sabedoria mas que, de qualquer modo, é
resultado de viver.
Andei reunindo pedacinhos de papel onde estas anotações vadias
foram feitas e ofereço-as ao leitor, sem que pretenda convencê-lo do que penso
nem convidá-lo a repensar suas ideias. São palavras que, de modo canhestro,
aspiram a enveredar pelo avesso das coisas, admitindo-se que elas tenham um
avesso, nem sempre perceptível mas às vezes curioso ou surpreendente.” CDA
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