Henfil
não é pra qualquer um – o que ele veria no Brasil de hoje?
Criador
da Graúna, que marcou gerações de luta, e militante por um país mais justo,
Henfil se entristeceria
"We Can", muito antes de
Ob
Graúna, personagem genial de Henfil, uma
espécie de voz do inconsciente coletivo do Brasil
Por Luara Ramos e Camila
Moreno, especial para os Jornalistas Livres
“Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança
Dança na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar”
Não há de ser inutilmente
A esperança
Dança na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar”
(João Bosco e Aldir Blanc)
Nesse
ano completaremos 30 anos sem Henfil.
Criador da Graúna, que marcou gerações de luta e militante pelas Diretas Já e
por um país mais justo, democrático e igualitário, Henfil certamente se entristeceria se visse o que
ocorre no Brasil de hoje, o país do golpe, onde aqueles que assaltaram o poder
insistem em usar de maneira cínica até mesmo a linguagem e a arte de quem lutou
contra toda a forma de opressão.
Henfil assistiria
à campanha idealizada pelo seu irmão, “Natal sem Fome”, ter que ser relançada
porque o país voltou pro Mapa da Fome. Henfil assistiria
à história se repetindo com a operação da PF “A Esperança Equilibrista”,
título, que remete à canção de João Bosco e Aldir Blanc – imortalizada na voz
de Elis Regina – e que também faz menção ao “irmão do Henfil“, àquela época exilado. Esta música, que se tornou
um hino da anistia, nos mostra o que parentes e sobreviventes dos horrores da
ditadura já sabiam: a anistia “ampla, geral e irrestrita”, que também perdoou
torturadores, não aplacou o terror, apenas o escondeu. A operação que levou
professores coercitivamente parece rir dos que resistem, como se dissesse: o
tempo de vocês dançarem na corda bamba se foi. O tempo da esperança acabou.
Desde sua promulgação em 1979, a Lei da
Anistia não corrigiu o ranço da nossa sociedade policialesca, resultando em
números assustadores de violência e abuso policial, que se antes aconteciam nos
becos das favelas, com autos de resistência forjados gerando genocídio da
juventude negra, agora são televisionados para o deleite de quem patrocina e
apoia o assassinato de reputações porque ainda não podem apoiar a morte literal
de seus adversários. O estado de exceção nunca foi exceção: herança maldita de
um passado colonial e escravocrata, a polícia brasileira sempre foi política. E
a política, como sabemos, há 500 anos é dominada por “herdeiros”.
A
campanha “Natal sem Fome” foi relançada recentemente com apoio massivo
de artistas como no passado recente. A classe artística agora empresta
novamente sua imagem a uma campanha cujo objetivo é muito nobre. Afinal, como
já disse Betinho: “quem tem fome tem pressa”. É possível afirmar, aliás, que os
artistas foram os primeiros a sentir o golpe. Afinal uma das medidas de Temer
assim que tomou posse foi dissolver o Ministério da Cultura, que até hoje
ninguém sabe se realmente existe ou não, tamanho é o descaso com as políticas
culturais. Mas voltando à campanha: sua última edição aconteceu há 10 anos,
quando as políticas de erradicação da miséria ainda engatinhavam. De lá pra cá
o Brasil saiu do Mapa da Fome, para o qual ameaça voltar devido às políticas de
austeridade de Michel Temer. Os cortes expressivos em programas já considerados
de sucesso, como o Bolsa Família, além da estagnação econômica, criaram o
ambiente perfeito para o desespero. A cada dia é possível observar o
crescimento de desempregados e, consequentemente, de trabalhadores informais e
da população em situação de rua. As “reformas” aprovadas e as que devem vir em
seguida, como a da previdência, também ajudam a empurrar os mais pobres para um
cenário em que a humilhação é sempre o prato do dia. Com a nova legislação
trabalhista nem mesmo o emprego será capaz de salvar da miséria e as novas leis
para a aposentadoria querem que o povo trabalhe até a morte. Tudo isso sem
falar no congelamento dos investimentos em saúde e educação por 20 anos, que vão
piorar os índices de desenvolvimento. É retrocesso goela abaixo. Como diria
Millôr, contemporâneo de Henfil n’O
Pasquim: “O Brasil tem um enorme passado pela frente”.
Henfil se
entristeceria com a situação da educação, o principal alvo desde os primeiros
minutos do golpe. A Reforma do Ensino Médio feita por meio de medida provisória
lembra bastante certos acordos “MEC-Usaid” que colocavam o sistema educacional
brasileiro totalmente a serviço dos interesses estadunidenses. A educação que
prevê senso crítico é chamada agora de doutrinadora. Henfil talvez desse risada, talvez ficasse chocado,
ao saber que Paulo Freire se tornou um inimigo do país e que a principal
questão a ser corrigida na nossa educação é a ideologia de gênero e a
doutrinação política. Agora a nova “reforma” prioriza o ensino técnico também
para atender as demandas do capital internacional, visando baratear a mão de
obra e esvaziar a formação, uma vez que prioriza disciplinas tecnicistas em
detrimento da história, da filosofia e da sociologia. A oferta do espanhol
substituída pelo inglês, decisão que combina com o esvaziamento do Mercosul.
Empregos? Só se for os que não pagam nem a corda com a qual nos enforcaremos. E
aqui é preciso ressaltar a perversidade da relação entre o desmantelamento da
indústria nacional, a recessão econômica que, vendida como herança maldita do
governo Dilma, só fez piorar com a crise política e mais uma vez a “deforma
trabalhista” que foi aprovada sob a justificativa de que acabaria com o
desemprego, mas seus defensores não lembraram que o Brasil ainda registrava
sensação de pleno emprego no início de 2014 sem precisar retirar nenhum direito
do trabalhador!
Além do ensino médio, as universidades
– outrora motivo de orgulho para a juventude que via na graduação uma oportunidade
e do país para a produção de conhecimento – agora é atacada como gasto, sob o
discurso de que não gera emprego ou riqueza e que estudantes custam caro. A
UERJ resiste, mas seus servidores (assim como milhares da gestão criminosa de
Sérgio Cabral) já não recebem há algum tempo. Na UFSC a perseguição resultou no
terrível e ainda mal explicado suicídio do reitor Luiz Carlos Cancellier. A
narrativa na grande mídia é a mesma já usada anteriormente com políticos:
primeiro acusa, depois se apuram os fatos. E o fato é que na manhã do dia 06 de
dezembro, reitor, vice-reitora e mais 7 professores da UFMG foram levados
coercitivamente para depor sob a acusação de desvio de verba do Memorial da
Anistia.
A denúncia contra os professores da
federal mineira não apresenta provas e os depoentes nem sequer receberam
qualquer aviso. Foram levados à força, mesmo que nunca tenham se recusado a
prestar esclarecimentos. A obra em questão, que se arrasta desde 2008
principalmente devido a problemas técnicos – uma vez que se trata de um prédio
histórico – não recebe repasse do Ministério da Justiça desde o ano passado. O
delegado responsável afirma que foram desviados pelo menos R$ 4 milhões sob um
esquema de bolsas de pesquisa não pagas e uma “editora fantasma”. A investigação
que começou em março deste ano ainda não deu conta de produzir provas, mas
garantiu o espetáculo do dia. A vice-reitora Sandra Regina Goulart Almeida foi
eleita para ocupar o principal cargo da universidade e a composição da lista
tríplice seria na semana seguinte. Coincidência?
Quem
quiser crer no acaso, que fique à vontade, Henfil não acreditaria. Mas próximo ao aniversário
do Ato Institucional nº5, que feriu de morte artistas, instaurou a censura,
perseguiu e matou militantes da resistência, nos deparamos com o
recrudescimento da polícia, aparelhada escancaradamente para servir aos
interesses de quem deveria ser alvo de suas operações. O Brasil, um dos
países-alvo da Operação Condor, que espalhou terror e retrocesso durante
décadas de ditadura na América Latina – com contribuição bélica e econômica dos
EUA historicamente registradas – nunca revisitou seu passado e todas as vezes
que tentou fazê-lo, sofreu com a represália dos setores mais conservadores da
sociedade que não apenas financiaram os anos de chumbo, como se beneficiaram
deles. Ou será que a Rede Globo vai pedir desculpas novamente depois de 50
anos?
E quais seriam os interesses por trás
da intimidação de professores? O golpe é contra quem pensa, quem produz
intelectualmente, quem questiona, quem critica, quem ri, quem dança, quem
interpreta, quem canta, quem sonha… Porque o golpe é antes de tudo um projeto
de entrega. O desmonte da Petrobras foi só o início. Vale voltar um pouco na
história e lembrar que os indícios da existência de uma grande reserva de
petróleo são da década de 1970, mas naquela época, auge da ditadura e do
“milagre econômico”, o Brasil não tinha nem sequer tecnologia para explorar as
riquezas do seu próprio quintal. Preferia, no entanto, ser eterno capacho dos
Estados Unidos, estes sim mui “solidários” e diretamente interessados no ouro
negro que movimento economias mundiais. Corta para 2012, quando sob pressão do
Movimento Estudantil, é aprovado o investimento dos royalties do pré-sal para a
educação. Àquela época, durante o 65º Congresso de Entidades Gerais da UNE, que
ocorria num Rio de Janeiro que recebia ao mesmo tempo a Rio+20 e a Cúpula dos
Povos, o debate amadurecia sobre como, por quê e para quem destinar o dinheiro
vindo da exploração, ao mesmo tempo em que se falava em energia renovável e até
se deveríamos de fato utilizar o petróleo como fonte de energia, uma vez que
todos sabem seu potencial devastador numa conjuntura de aquecimento global.
Hoje
já não podemos decidir nada, o pré-sal foi entregue e os brasileiros não verão
benefício algum. Outro fato daquele junho de quatro anos atrás: golpe
“institucional” no Paraguai. A “casualidade” se dá por causa de um nome:
Liliana Ayalde. A embaixadora que serviu até poucos meses antes da queda do
presidente eleito Fernando Lugo se transferiu para o Brasil onde atuou até
janeiro de 2017. Até os menos afeitos a teorias da conspiração devem estranhar
tantos movimentos semelhantes. E caso ainda duvidem bastante é só dar uma
rápida olhada nos documentos vazados pelo Wikileaks: de âncora racista da vênus
platinada até presidente golpista e o José Serra (que ocupou o Itamaraty quando
virou ministro de Relações Exteriores do golpe), que nunca escondeu sua vontade
de entregar o petróleo nacional nas mãos dos EUA, diversos personagens já
passaram pelas conversas com embaixadores, empresários e representantes dos
interesses norte-americanos. Se o Brasil fosse um país sério essa gente já
estava detida por crime de lesa-pátria e Henfil poderia
escrever uma nova versão de seu “diário de um cucaracha” que alguns brasileiros
parecem mesmo ter sangue de barata correndo em suas veias.
Henfil assistiria
a uma nova experiência neoliberal sendo implantada no país, onde a ordem é
privatizar tudo, inclusive a educação, o conhecimento e a arte, que é o último
refúgio de humanidade que uma sociedade pode ter. Ficaremos condenados à
exportação de commodities, à flutuação dos preços internacionais (comandados
pela mão bem visível das maiores economias e potências bélicas mundiais).
Exportar inteligência? Tecnologia? Isso não é papel de um país de “terceiro
mundo”. A terceira via construída pelos BRICs padece sob a ganância de quem
paga a miséria dos outros povos em dólar. Por isso os ataques não são apenas no
plano econômico. Não basta empobrecer a população e convencê-la de que a
meritocracia é possível numa sociedade desigual: é preciso torná-la
completamente imbecil. Só assim se mina a resistência, só assim os canalhas
serão eternos vencedores. E sabemos todos que os “vencedores” é que contam a
história. Depois de estar na China (antes da Coca Cola!), Henfilveria suas principais críticas ao modelo chinês
implantadas de maneira arbitrária agora bem perto, na sua própria terra.
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