sábado, 26 de maio de 2018

LIVRO : FELICIDADE CLANDESTINA


           
 Lançado inicialmente em 1971, “ Felicidade Clandestina” reúne 25 textos de Clarice   
               Lispector que podem ser classificados em crônicas ou contos.
                Muitos desses textos foram publicados como crônicas no Jornal do Brasil, para onde   
               Clarice escrevia semanalmente de 1967 a 1972.
               Destacarei aqui, três contos que constam no curta-metragem “ Clandestina
               Felicidade”.
1.       Felicidade Clandestina - O conto que dá nome ao livro, Felicidade Clandestina, tem como narradora uma menina que vivia em Recife – segundo estudiosos, seria uma própria referência à autora – que relembra um episódio de sua infância.
Uma colega, cujo pai era dono de livraria, comentou certa ocasião que possuía o livro Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Tratava-se de um dos objetos de desejo da protagonista e ela o pediu emprestado. A dona se comprometeu a fazê-lo, mas, por dias seguidos, transferia a entrega para o dia seguinte sob as mais diversas justificativas, exercendo sobre a mesma uma tortura chinesa.
Nisto, a protagonista enchia-se sempre de esperança : “ Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam .
 Até que, certa ocasião, a mãe da dona do livro descobriu tudo e fez a filha emprestar o livro. A protagonista, ao receber o livro, percebe o verdadeiro sentido da palavra “felicidade”. O ponto central desse texto é o conceito de “felicidade”. Nele, a escritora parece se questionar “afinal, o que é felicidade?”. A menina presente na crônica parece conhecer bem o dito popular “felicidade é bom, mas dura pouco”, uma vez que ela se utiliza de todas as formas para prolongar seu sentimento de felicidade. Uma vez que ela ganhou permissão para ficar com o livro pelo tempo que desejasse, ela o deixa no quarto e finge esquecer que o possui, só para se redescobrir possuidora dele. Dessa forma, sua felicidade aparece como um sentimento “clandestino”, como veremos no fragmento abaixo:

“Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardava o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu pressentia.”

               Quem de nós, não tem este tipo de sentimento? Quem de nós não gostaria que muitos de nossos desejos se eternizassem? Porém, com a maturidade, vemos que a felicidade vai tendo novos sentidos . Lembro-me de quando criança, muitas vezes que ganhava algo que gostava muito, eu ia me deliciando desse desejo aos poucos: como um chocolate, um livro..depois, queria que isto também se estendesse para as pessoas; mas comecei  a perceber que não era bem  assim..com coisas, isto eu poderia fazer, mas com pessoas, existiria muitos elementos que estariam envolvidos, como: afetividade, afinidade...e que o importante quando elevamos estes atos para as pessoas é que a cada encontro ele seja pleno, inteiro, cheio de descobertas e aprendizagens. Que os nossos sentimentos sejam os mais sublimes. Vimos neste conto os sentimentos diversos: tanto os sublimes como os pequenos: entre os quais destaco a perversidade da garota, a frustração da personagem principal, no primeiro momento, decepção da mãe da garota.
Através deste conto redescobrimos nossas sensações e incompletude.
         2 . Restos do Carnaval - também trabalha com a perspectiva da lembrança de uma narradora ainda menina.Conta a história de um Carnaval que viveu em Recife, aos oito anos. (Por volta dos oito anos, Clarice perdeu sua mãe. Três anos depois, a família muda-se para o Rio de Janeiro.) Marcada pela debilidade física da mãe, a narradora passava horas em frente à casa que morava com uma sacola cheia de confete, bem como um lança perfume nas mãos.
        E quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me tomava?     Como se enfim explicassem para que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.”(...) “Duas coisas preciosas eu ganhava então e economizava-as com avareza para durante os três dias: um lança-perfume e um saco de confete.”
       Mas houve um Carnaval diferente dos outros: “É que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia era no figurino Rosa.Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom cor-de-rosa, com as quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor. (...) Naquele carnaval, pois pela primeira vez na vida eu teria o que sempre quisera: ia ser outra que não eu mesma.”
        No entanto, no momento de festejar, a saúde da mãe piorou, a família se agitou e ela foi convocada para ir até à farmácia comprar remédios. “Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge – minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia.”
Quando tudo se acalmou, ela pôde ir até a frente do sobrado.
Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. (...) Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.
Só depois é que veio a salvação. Um menino de doze anos passou e cobriu seus cabelos de confete, como se jogasse água sobre uma rosa.” E eu, então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.”
               Quem nunca teve em sua vida estes momentos epifânicos? No conto, que é um dos   muito raros explicitamente autobiográficos que ela contou, ela lembra este momento de dor e de alegria, que perpassa todas as suas lembranças da cidade onde se criou, e onde a sua mãe morreu quando tinha 9 anos.  sempre em Clarice a gente vê as possibilidades de transformação da vida que pensamos ter, ou da coisa que pensamos ver. A ideia de que há muito mais no universo do que aquele que pensamos enxergar é uma das grandes marca da Clarice. 
 3- Uma história de tanto amor-  Esse conto retrata a história de uma menina mineira que tinha duas galinhas: a Pedrina e a Petronilha. A menina cuidava delas como se fossem pessoas e de tanto observá-las conhecia a alma e os anseios íntimos das mesmas. “Quando a menina achava que uma delas estava doente do fígado, ela cheirava embaixo das asas delas,, com uma simplicidade de uma enfermeira, o que considerava ser o sintoma máximo de doenças, pois o cheiro de galinha viva não é de se brincar.Então pedia um remédio a uma tia. E a tia: “Você não tem coisa nenhuma no fígado”. Então, com a intimidade que tinha com essa tia eleita, explicou-lhe para quem era o remédio.”
Certa vez, a menina foi passar o dia fora e, quando voltou, a Petronilha tinha sido comida pela família. A menina então ficou bastante contrariada.
A menina era criatura de grande capacidade de amar: uma galinha não corresponde ao amor que se lhe dá e no entanto a menina continuava a amá-la sem esperar reciprocidade. Quando soube o que acontecera com Petronilha passou a odiar todo mundo da casa, menos sua mãe que não gostava de comer galinha e os empregados que comeram carne de vaca ou de boi. O seu pai, então, ela mal conseguia olhar: era ele quem mais gostava de comer galinha.”
No entanto, a mãe apenas disse a pobre menina que lamentara não ter comido algum pedaço da Petronilha, argumentando que quando comesse os bichos, eles tendem a ficar parecidos com os humanos. A outra galinha, a Pedrina, morreu "naturalmente". Na realidade, teve uma morte apressada pela menina que, ao vê-la doente, colocou-a embrulhada num pano escuro, em cima dos tijolos quentes, acabando por apressar sua morte.
Já um pouco maiorzinha, a menina teve outra galinha, a Eponina.
O amor por Eponina: dessa vez era um amor mais realista e não romântico; era o amor de quem já sofreu por amor. E quando chegou a vez de Eponina ser comida, a menina não apenas soube como achou que era o destino fatal de quem nascia galinha. As galinhas pareciam ter uma presciência do próprio destino e não aprendiam a amar os donos nem o galo. Uma galinha é sozinha no mundo.”
 Esta foi comida ao molho pardo por toda a família, inclusive pela menina que, embora sem fome, quis que Eponina se incorporasse nela. Certa da posse daquela galinha, a menina demonstrava durante a refeição que tinha ciúmes de quem também comia a pobre da Eponina.
A menina era um ser feito para amar até que se tornou moça e havia os homens.” .
Este sentimento de amor incondicional que a personagem tem por suas galinhas, ao se tornar moça é transmutado, pois a partir de agora,  tem consciência das perdas e superações.
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