Lançado inicialmente em 1971, “ Felicidade Clandestina”
reúne 25 textos de Clarice
Lispector
que podem ser classificados em crônicas ou contos.
Muitos
desses textos foram publicados como crônicas no Jornal do Brasil, para onde
Clarice
escrevia semanalmente de 1967 a 1972.
Destacarei
aqui, três contos que constam no curta-metragem “ Clandestina
Felicidade”.
1. Felicidade Clandestina - O conto que dá
nome ao livro, Felicidade Clandestina, tem como narradora uma
menina que vivia em Recife – segundo estudiosos, seria uma própria referência à
autora – que relembra um episódio de sua infância.
Uma colega, cujo
pai era dono de livraria, comentou certa ocasião que possuía o livro Reinações
de Narizinho, de Monteiro Lobato. Tratava-se de um dos objetos de desejo da
protagonista e ela o pediu emprestado. A dona se comprometeu a fazê-lo, mas,
por dias seguidos, transferia a entrega para o dia seguinte sob as mais
diversas justificativas, exercendo sobre a mesma uma tortura chinesa.
Nisto, a
protagonista enchia-se sempre de esperança : “ Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria:
eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam
.”
Até que, certa ocasião, a mãe da dona do livro
descobriu tudo e fez a filha emprestar o livro. A protagonista, ao receber o
livro, percebe o verdadeiro sentido da palavra “felicidade”. O ponto
central desse texto é o conceito de “felicidade”. Nele, a escritora parece se
questionar “afinal, o que é felicidade?”. A menina presente na crônica parece
conhecer bem o dito popular “felicidade é bom, mas dura pouco”, uma vez que ela
se utiliza de todas as formas para prolongar seu sentimento de felicidade. Uma
vez que ela ganhou permissão para ficar com o livro pelo tempo que desejasse,
ela o deixa no quarto e finge esquecer que o possui, só para se redescobrir
possuidora dele. Dessa forma, sua felicidade aparece como um sentimento
“clandestino”, como veremos no fragmento abaixo:
“Como contar o que se seguiu? Eu estava
estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o
livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que
segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto
tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente,
meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que
não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li
algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei
ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardava o
livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas
dificuldades para aquela coisa
clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para
mim. Parece que eu pressentia.”
Quem
de nós, não tem este tipo de sentimento? Quem de nós não gostaria que muitos de
nossos desejos se eternizassem? Porém, com a maturidade, vemos que a felicidade
vai tendo novos sentidos . Lembro-me de quando criança, muitas vezes que
ganhava algo que gostava muito, eu ia me deliciando desse desejo aos poucos:
como um chocolate, um livro..depois, queria que isto também se estendesse para
as pessoas; mas comecei a perceber que
não era bem assim..com coisas, isto eu
poderia fazer, mas com pessoas, existiria muitos elementos que estariam
envolvidos, como: afetividade, afinidade...e que o importante quando elevamos
estes atos para as pessoas é que a cada encontro ele seja pleno, inteiro, cheio
de descobertas e aprendizagens. Que os nossos sentimentos sejam os mais
sublimes. Vimos neste conto os sentimentos diversos: tanto os sublimes como os pequenos:
entre os quais destaco a perversidade da garota, a frustração da personagem
principal, no primeiro momento, decepção da mãe da garota.
Através deste
conto redescobrimos nossas sensações e incompletude.
2 . Restos do Carnaval
- também trabalha com a perspectiva da lembrança de uma narradora ainda menina.Conta
a história de um Carnaval que viveu em Recife, aos oito anos. (Por
volta dos oito anos, Clarice perdeu sua mãe. Três anos depois, a família
muda-se para o Rio de Janeiro.) Marcada pela debilidade física da mãe, a
narradora passava horas em frente à casa que morava com uma sacola cheia de
confete, bem como um lança perfume nas mãos.
“E
quando a festa ia se aproximando, como explicar a agitação íntima que me
tomava? Como se enfim explicassem para
que tinham sido feitas. Como se vozes humanas enfim cantassem a capacidade de
prazer que era secreta em mim. Carnaval era meu, meu.”(...) “Duas coisas preciosas eu ganhava então e
economizava-as com avareza para durante os três dias: um lança-perfume e um
saco de confete.”
Mas
houve um Carnaval diferente dos outros: “É
que a mãe de uma amiga minha resolvera fantasiar a filha e o nome da fantasia
era no figurino Rosa.Para isso comprara folhas e folhas de papel crepom
cor-de-rosa, com as quais, suponho, pretendia imitar as pétalas de uma flor.
(...) Naquele carnaval, pois pela primeira vez na vida eu teria o que sempre
quisera: ia ser outra que não eu mesma.”
No
entanto, no momento de festejar, a saúde da mãe piorou, a família se agitou e
ela foi convocada para ir até à farmácia comprar remédios. “Muitas coisas que me aconteceram tão piores que
estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso entender agora: o jogo de dados
de um destino é irracional? É impiedoso. Quando estava vestida de papel crepom
todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge – minha mãe
de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e
mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia.”
Quando
tudo se acalmou, ela pôde ir até a frente do sobrado.
“Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E,
como nas histórias que eu havia lido sobre fadas que encantavam e desencantavam
pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples
menina. (...) Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre
mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.“
Só
depois é que veio a salvação. Um menino de doze anos passou e cobriu seus
cabelos de confete, como se jogasse água sobre uma rosa.” E eu, então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que
enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.”
Quem nunca teve em sua vida estes
momentos epifânicos? No conto, que é
um dos muito raros explicitamente
autobiográficos que ela contou, ela lembra este momento de dor e de alegria,
que perpassa todas as suas lembranças da cidade onde se criou, e onde a sua mãe
morreu quando tinha 9 anos. sempre em Clarice a gente vê as
possibilidades de transformação da vida que pensamos ter, ou da coisa que
pensamos ver. A ideia de que há muito mais no universo do que aquele que
pensamos enxergar é uma das grandes marca da Clarice.
3- Uma história de tanto amor- Esse conto
retrata a história de uma menina mineira que tinha duas galinhas: a Pedrina e a
Petronilha. A menina cuidava delas como se fossem pessoas e de tanto
observá-las conhecia a alma e os anseios íntimos das mesmas. “Quando a menina achava que uma delas estava
doente do fígado, ela cheirava embaixo das asas delas,, com uma simplicidade de
uma enfermeira, o que considerava ser o sintoma máximo de doenças, pois o
cheiro de galinha viva não é de se brincar.Então pedia um remédio a uma tia. E
a tia: “Você não tem coisa nenhuma no fígado”. Então, com a intimidade que tinha
com essa tia eleita, explicou-lhe para quem era o remédio.”
Certa vez, a menina foi passar o dia
fora e, quando voltou, a Petronilha tinha sido comida pela família. A menina
então ficou bastante contrariada.
“A
menina era criatura de grande capacidade de amar: uma galinha não corresponde
ao amor que se lhe dá e no entanto a menina continuava a amá-la sem esperar
reciprocidade. Quando soube o que acontecera com Petronilha passou a odiar todo
mundo da casa, menos sua mãe que não gostava de comer galinha e os empregados
que comeram carne de vaca ou de boi. O seu pai, então, ela mal conseguia olhar:
era ele quem mais gostava de comer galinha.”
No entanto, a mãe apenas disse a pobre
menina que lamentara não ter comido algum pedaço da Petronilha, argumentando
que quando comesse os bichos, eles tendem a ficar parecidos com os humanos. A
outra galinha, a Pedrina, morreu "naturalmente". Na realidade, teve
uma morte apressada pela menina que, ao vê-la doente, colocou-a embrulhada num
pano escuro, em cima dos tijolos quentes, acabando por apressar sua morte.
Já um pouco maiorzinha, a menina teve
outra galinha, a Eponina.
“ O
amor por Eponina: dessa vez era um amor mais realista e não romântico; era o
amor de quem já sofreu por amor. E quando chegou a vez de Eponina ser comida, a
menina não apenas soube como achou que era o destino fatal de quem nascia
galinha. As galinhas pareciam ter uma presciência do próprio destino e não
aprendiam a amar os donos nem o galo. Uma galinha é sozinha no mundo.”
Esta foi comida ao molho pardo por toda a
família, inclusive pela menina que, embora sem fome, quis que Eponina se
incorporasse nela. Certa da posse daquela galinha, a menina demonstrava durante
a refeição que tinha ciúmes de quem também comia a pobre da Eponina.
“ A
menina era um ser feito para amar até que se tornou moça e havia os homens.” .
Este sentimento de amor incondicional
que a personagem tem por suas galinhas, ao se tornar moça é transmutado, pois a
partir de agora, tem consciência das
perdas e superações.
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