Não é fácil estar confinado com uma párvulo. Faz dois meses que minha filha pede, todo dia, pra ir à praia.
Na primeira vez, tentei explicar que não dava. “Filha, tá rolando uma pandemia, porquê é que eu vou explicar, um vírus que…” —daí me lembro que ela tem dois anos de idade. Tento reunir: “Não dá, é impossível”, e ela logo começa a chorar, e lembro que é mais fácil explicar uma pandemia pra uma párvulo de dois anos do que expressar que “não dá, é impossível”.
No desespero surge uma teoria. “Chegamos. Olha o mar ali.” E aponto o tapete azul. E ela vê o mar se erguer, e abre um sorriso. Basta.
Desde logo, quase todos os dias ela me diz: “Vamo pá paia?”, e vai buscar o maiô, seu chapéu UV e sua cadeirinha de praia diminuta. Espalhamos almofadas pelo solo, nossa areia improvisada, e logo ela abre a cadeirinha em frente ao tapete azul, que faz as vezes do mar.
Puxo uma cadeira e chamamos o moço do mate de galão. Pagamos com uma tampinha de cerveja. “O tôco”, ela lembra. E pego de volta a tampinha que eu mesmo fingi que tinha entregado. “Obrigado.” Um biscoito Mundo pra cada um. Gulosice pra mim, sal pra ela.
Contemplamos o mar: “Hoje tá indócil, digo. Você tem coragem?”. Ela diz: “Tenho”. E mergulha no mar do tapete, gritando. “Olha, papai, um peixe!” E ergue uma almofada. “Desvelo!”, digo.
Você tá muito fundo. Ela logo finge que se afoga, e eu corro pra salvá-la. E é uma desculpa pra abraçá-la muito poderoso.
Desde logo a estante já foi um forte, o armário um esconderijo. Chegamos num momento da quarentena em que todos os objetos da vivenda já foram ressignificados. Já não há mais o que inventar. O esfregão é uma peruca, a vassoura é um cavalo, o controle remoto é um celular, a televisão, uma grande aliada. Na hora da faxina, toma-lhe “Frozen”. Livre estou, cantamos, livre estou —porquê se estivéssemos.
Já não sei porquê vai ser seu reencontro com a praia de verdade. Talvez a areia incomode, o mar amedronte. Dois meses e meio, fiz as contas, equivalem a três anos pra mim: um décimo da vida. É uma perpetuidade. Já não sei se o mundo lá fora estará à profundeza do tapete.
Muitas vezes invejamos os amigos sem filhos. Os livros que estaríamos lendo, os filmes, as séries, os instrumentos que aprenderíamos a tocar. Mas o tapete seria exclusivamente um tapete. E a vassoura exclusivamente a vassoura.
Não sei o que seria de nós sem a companhia de alguém que nos faz ver, em cada esquina da vivenda, todas as possibilidades do mundo.
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