quarta-feira, 17 de junho de 2020

SE EU FOSSE EU - CLARICE LISPECTOR


Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase “se eu fosse eu”, que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar. Diria melhor, sentir.
E não me sinto bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser levemente locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida. Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei.
Metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho, por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo o que é meu, e confiaria o futuro ao futuro.
“Se eu fosse eu” parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido. No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor, aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais.
(Clarice Lispector. A Descoberta do Mundo)
“Se eu fosse eu”. Sabe aqueles textos que mexem com você de tal forma que após a leitura você não é mais a mesma? É isso.
É um texto simples que nos aproxima da verdade. Toca. Toca no coração, emociona e faz sentir. É um texto que incomoda também, pois é bastante revelador; e nos leva a  refletir  em direção à nossa expressão máxima e verdadeira, sem reticências e medos, nos coloca em direção à nossa liberdade.
Ao ler, me questionei sobre muitas coisas, especificamente sobre minhas sombras . Sobre como me expresso no mundo e se essa expressão está alinhada com o meu mundo interno. E quer saber a verdade? Ainda não cheguei lá.
Olhando para trás vejo que já caminhei muito. Mas, também percebo que este caminhar não tem fim. O espaço entre minha identidade , ou seja, quem realmente sou, como me sinto e o que tem real valor para mim, versus a minha identidade criada, ou seja, a fachada pela qual eu me apresento ao mundo, está bem menor do que era antes, mas ainda tem chão. Me pergunto o que falta? Coragem? Autoconhecimento? Acho que um pouco dos dois. Mas... continuo  seguindo em frente...e me desafiando quando posso.

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