quinta-feira, 31 de outubro de 2019

FILME : QUE HORAS ELA VOLTA?

É impossível assistir a “Que Horas ela volta” sem se questionar sobre a maneira com que tratamos as outras pessoas. Também não tem como não sentir na pele o tapa de luva que o filme carrega sobre os valores “normais” de uma sociedade que está habituada a ter alguém trabalhando para si, mas que na verdade despreza e humilha quem é socialmente menos favorecido.
Ambientado na zona sul de São Paulo, a trama se passa no Morumbi, bairro de classe média alta da cidade. Regina Casé é Val, uma empregada doméstica de Recife que mora há muitos anos na casa dos patrões. O casal tem um filho, mas é Val quem cria a criança. Interpretados por Karine Teles e Lourenço Mutarelli, os patrões são o estereótipo da elite paulistana: um artista que vive do transbordamento de sua conta bancária com algumas obras que conseguiu vender, e a esposa que é estilista consagrada. Pelo menos é o que entendemos quando, no início do filme, uma equipe de jornalistas vai até a casa dela para uma entrevista.
Val é considerada “quase da família”, mas dorme em um quartinho pequeno e mal ventilado, além de fazer as refeições em uma mesa separada na cozinha enquanto a família se alimenta na sala de jantar. A piscina da casa também é território proibido para a empregada, que só chegou perto do local quando o filho dos patrões era criança e precisava de supervisão para se divertir na água.
A atuação de Regina Casé está espetacular. Ela simplesmente mergulha na personagem e retrata com fidelidade o estereótipo de quem acredita que nasceu para cumprir ordens e se contenta com o que tem. Tudo isso é abalado com a chegada de Jéssica (Camila Márdila), a filha de Val que mora no Recife com a tia. A garota vem a São Paulo para estudar e prestar o vestibular em arquitetura. O choque começa quando ela descobre que a mãe mora na casa dos patrões e é ali que ela também vai ter que morar pelos próximos meses.
Jéssica é uma garota inteligente, questionadora. Percebe-se que ela tem críticas ao sistema e sobre a estratificação da sociedade furtivamente segregadora. Logo que pisa na casa, Jéssica logo conversa com os patrões de Val de igual para igual. O comportamento dela desperta interesse no personagem de Lourenço Mutarelli, e ali percebemos que haverá algum desconforto mais pra frente.
É Mutarelli quem dá algumas regalias para a garota, que já na primeira noite pega um livro emprestado para ler. Ela também consegue ficar no quarto de hóspedes, e não no quartinho de empregadas junto com a mãe. Sabendo do interesse da garota pela arquitetura, ele a convida para conhecer o Copan, prédio famoso e turístico da capital desenhado por Oscar Niemeyer.
Ao longo dias, a aproximação entre os dois vai ficando evidente, mas o interesse dele nela nunca é correspondido por Jéssica, que está realmente achando tudo normal, pois está acostumada a uma situação em que o tratamento entre as pessoas não se limita a sua condição social.
As faíscas entre Jéssica e Val vão aumentando quando a garota se incomoda com o fato de a mãe ter se acomodado com a situação de empregada em que vive, e aceitar o fato de ter que almoçar na cozinha “de bico calado”.
A personagem de Karine Teles começa a desaprovar a maneira com que Jéssica se sente tão à vontade na casa e pede para que Val “a mantenha da cozinha para lá”, restringindo assim o acesso da filha aos cômodos comuns da casa e deixando-a apenas na área de empregados. Certo dia, a garota acaba caindo na piscina acidentalmente enquanto o filho do casal está lá se divertindo com alguns amigos. O garoto e até chega a convidá-la para entrar na água com eles, mas ela sabe que não pode e não vai. Pouco depois, numa brincadeira, ela acaba caindo.
A patroa vê Jéssica na água e ordena a Val que a garota saia da piscina imediatamente. No dia seguinte pede para a água seja trocada e inventa que “um rato caiu na água”, apenas para mascarar o sentimento mesquinho elitista e a sensação de sentir que água está “contaminada” só porque a “filha da empregada” esteve ali.
A personagem de Karine, aliás, tem o papel de evidenciar esse sentimento em diversas cenas do filme. Ela trata Val com carinhos seletivos e frases como “imagina, você é da família”, mas na verdade o que ela faz é mostrar quem manda e quem obedece na casa. Tudo ali vira gratidão, e nos faz pensar sobre tudo aquilo que fazemos diariamente e por que fazemos assim, afinal.
O filho do casal é alheio a esse sentimento. Como foi praticamente criado por Val, ele tem um carinho muito grande pela empregada e não a trata como serviçal, mas com sincero e verdadeiro carinho como se ela fosse sua mãe. Na verdade, tendemos a pensar até que ele não vê o que os pais fazem com a empregada e até mesmo que ele não conhece os pais de verdade. Esse ponto do filme traduz com certa brutalidade a geração de filhos que são criados pelas empregadas e mal veem os pais durante os dias, ou que quando veem, não prestam atenção porque existem celulares, televisão e qualquer outro artifício que mascare a realidade e permita que se crie uma realidade paralela à que se vive.
Em idade escolar, ele também vai prestar vestibular. A família realmente crê que ele tem tudo para ser bem colocado na prova, pois estudou em escola privada — considerada boa — durante toda a vida. Eles até chegam a ver Jéssica como pretensiosa por querer estudar na USP (Universidade de São Paulo) ser pobre e vir de escola pública. O abalo na estrutura “comercial de margarina” da família rica perfeita se dá quando Jéssica passa na primeira fase do vestibular e o filho deles não.
A grande mensagem do filme vem no seu final, quando descobrimos que Jéssica deixou um filho pequeno em Recife para tentar a vida em São Paulo numa boa Universidade. Vemos aqui a filha fazendo exatamente o que a mãe fez com ela quando criança, pois Val também vai para São Paulo em busca de um emprego para o menos garantir que Jéssica conseguisse ter uma vida normal, embora sem luxos.
Val se comove com a situação e ouve os lamentos da filha de que a maneira que ela vive na casa dos patrões não pode se considerada normal ou agradável. Jéssica então sai da casa deles e vai para outro lugar que não sabemos claramente onde é. Depois disso, Val, que sempre amou sua filha, mas não pôde ficar perto dela como queria, resolve alugar uma casa na periferia da cidade, mas que agora garanta que elas vivam juntas e próximas. Val ainda pede que ela traga o filho para que ele não tenha de passar pelo que elas passaram e fique perto da mãe.
Um filme com várias questões sociais para serem refletidas. Lindooo filme. Vale à pena assistir.




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