Nunca vi um texto tão atual como este de Mia Couto sobre o medo, apesar de ter sido escrito para Conferências do Estoril, Portugal em 2011. A cada dia parece que querem institucionalizar o medo. É um dos sentimentos mais crueis, pois nos paralisa, nos desanima e nos destrói. Temos que todos os dias de combatê-lo e usá-lo sempre ao nosso favor, procurando enfrentá-lo, por mais que saibamos que não é fácil. Segue
abaixo o texto para refletirmos:
Bom, nada mais inseguro do que um escritor numa conferência sobre
segurança, um escritor que se sente um pouco solitário porque foi o único
convidado nesta e na anterior edição. Preciso de um abrigo, preciso de um
refúgio. É um texto que vou ler... o presidente tinha dito que eu devia falar
espontaneamente. Não sou capaz em sete minutos. Eu escrevi este texto que vou ler e chama-se
Murar o Medo
Murar o Medo
O
medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de ganhar confiança em celestiais
criaturas, aprendi a temer monstros, fantasmas e demônios. Os anjos, quando
chegaram, já era para me guardarem. Os anjos atuavam como uma espécie
de agentes de segurança privada das almas.
Nem
sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade.
Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinavam a recear os desconhecidos. Na
realidade, a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada,
não por estranhos, mas por parentes e conhecidos. Os fantasmas que serviam na
minha infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais seguros em
ambiente que reconhecemos.
Os
meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria
mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha
língua, da minha cultura e do meu território. O medo foi, afinal, o mestre
que mais me fez desaprender. Quando deixei a minha casa natal, uma invisível
mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte,
vislumbravam-se mais muros do que estradas.
Nessa
altura algo me sugeria o seguinte: que há, neste mundo, mais medo de
coisas más do que coisas más propriamente ditas.
No
Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um
invejável casting internacional. Os chineses que comiam
crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência e um ateu
barbudo com um nome alemão. Esses fantasmas tiveram o fim de todos os
fantasmas: morreram quando morreu o medo.
Os
chineses abriram restaurantes à nossa porta, os ditos terroristas são hoje
governantes respeitáveis e Carl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que
não deixou descendência. O preço dessa construção de terror foi, no entanto,
trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo,
cometeram-se as mais indizíveis barbaridades.
Em
nome da segurança mundial, foram colocados e conservados no poder alguns dos
ditadores mais sanguinários de toda a história. A mais grave dessa longa
herança de intervenção externa é a facilidade com que as elites africanas
continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos.
A
Guerra Fria esfriou, mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou,
inventando rapidamente outras geografias do medo: a Oriente e a Ocidente e, por
que se trata de entidades demoníacas, não bastam os seculares meios de governação.
Precisamos de intervenção com legitimidade divina.
O
que era ideologia passou a ser crença. O que era política, tornou-se religião.
O que era religião, passou a ser estratégia de poder.
Para
fabricar armas, é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos, é
imperioso sustentar fantasmas.
A
manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de
especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos
dizem: para superarmos as ameaças domésticas, precisamos de mais polícia, mais
prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para enfrentarmos as
ameaças globais, precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a
suspensão temporária da nossa cidadania.
Todos
sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse
outro caminho poderia começar, por exemplo, pelo desejo de conhecermos
melhor esses que, de um e de outro lado, aprendemos a chamar de “eles”. Aos
adversários políticos e militares juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias.
O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é
traiçoeira e a humanidade, imprevisível.
Vivemos
como cidadãos, e como espécie, em permanente situação de emergência. Como em
qualquer outro estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a
privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa. Todas essas
restrições servem para que não sejam feitas perguntas, como por exemplo, estas:
por que motivo a crise financeira não atingiu a indústria do armamento? Por que
motivo se gastou, apenas no ano passado, um trilhão e meio de dólares em
armamento militar? Por que razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia
são exatamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Kadafi? Por que
motivo se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre
justiça? Se queremos resolver e não apenas discutir a segurança mundial,
teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes.
Há
uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias, em todo o
mundo, sem que seja preciso o pretexto da guerra.
Essa
arma chama-se fome.
Em
pleno século XXI, um em cada seis seres humanos passa fome. O custo para
superar a fome mundial seria uma fração muito pequena do que se gasta em
armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso
tempo.
Mencionarei
ainda uma outra silenciada violência: em todo o mundo, uma em cada três
mulheres foi -- ou será -- vítima de violência física ou sexual durante o seu
tempo de vida. É verdade que, sobre uma grande parte do nosso planeta,
pesa uma condenação antecipada pelo fato simples de serem mulheres.
A
nossa indignação, porém, é bem menor que o medo. Sem darmos conta, fomos
convertidos em soldados de um exército sem nome e, como militares sem farda,
deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e discutir razões. As
questões de ética são esquecidas, porque está provada a barbaridade dos outros
e, porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência, nem de
ética nem de legalidade.
É
sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma
muralha. A Grande Muralha foi erguida para proteger a China das guerras e das
invasões. A Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente
morreram mais chineses construindo a muralha do que vítimas das invasões que
realmente aconteceram. Diz-se que alguns trabalhadores que morreram foram
emparedados na sua própria construção.
Esses
corpos convertidos em muro e pedra são uma metáfora do quanto o medo nos pode
aprisionar.
Há
muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos, mas não
há hoje, no mundo um muro, que separe os que têm medo dos que não têm medo. Sob
as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do sul e do norte, do ocidente e
do oriente. Citarei Eduardo Galiano acerca disto, que é o medo global, e
dizer:
"Os
que trabalham têm medo de perder o trabalho; os que não trabalham têm medo de
nunca encontrar trabalho; quando não têm medo da fome têm medo da comida; os
civis têm medo dos militares; os militares têm medo da falta de armas e as
armas têm medo da falta de guerras.
E,
se calhar, acrescento agora eu: há quem tenha medo que o medo acabe.
Muito
obrigado.
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