As notícias falam que houve um aumento de 8,4% nos registros de feminicídios, com a média de uma mulher sendo morta a cada duas horas no Brasil. Pela tragédia política de hoje, em anteriores oitos de março mal podíamos imaginar o abismo onde caímos.
O crime antigo de assassinato de companheiras, namoradas e esposas, volta e
resiste. As pesquisas falam que 71% das mulheres foram atacadas pelo atual ou
ex-companheiro. Quanta coincidência no atraso! No romance “A mais longa duração
da juventude”, há um trecho em que narro o princípio do crime contra Soledad
Barrett, na farsa do amor do Cabo Anselmo por ela:
“Soledad está na sua casa em Olinda. Ela se veste com moda particular, linda,
com um desapego que vai na mesma medida do mundo pelo qual luta. É uma casa,
uma galeria, uma butique durante o dia e escritório à noite. Ali, na Sigismundo
Gonçalves, ela se veste com túnicas longas, largas, que não lhe revelam as
coxas marcadas com suástica a navalha. Roupas que não lhe deixam tampouco
mostrar o grão a germinar da futura dor no ventre. Por Deus, como é bela. Alta,
digna e tão desejada por todos, por mim, silencioso amante. Ela se ergue no
centro da sala, e no seu semblante não existe maldade, ou a perversão aprendida
nas relações brutais da realidade política. Os seus olhos, que ora se veem
claros, ora se veem castanhos, mas sempre radiantes, se abrem. Ali, na butique
Mafalda, ela recebe um pintor de Olinda, amigo do companheiro Anselmo/Daniel.
Então, para o carinhoso companheiro que sai agora à noite com o pintor, Soledad
abre os braços, para abraçar o querido. Por Deus, o quanto ela é calorosa! Por
Deus, que calor guarda em suas coxas, por Deus, se pudéssemos voltar no tempo e
restaurar os fatos conforme a justiça, ah se pudéssemos ir além do grito agora,
ah se fôssemos o povo que grita para denunciar o vilão no palco: cuidado! Mas
não, assistimos ao pesadelo com a inteligência inútil, aquela que não muda mais
o que se foi. Soledad abre os braços para deixá-los a par com o coração, e a
esse amor Anselmo escarra. Para o inferno, por Deus, esta é uma prova da Tua
crueldade, faze-nos voltar impotentes até o mundo que seria e não foi. Então
Soledad lhe abre os lindos braços, as esperançosas mãos, os frágeis e finos
dedos, e seu corpo se abre para o amor que não vem, mas ela por imaginação do
querer pensa que virá, então ela abre o seu corpo para o amado. Ele vem e
envolve a sua doce delicadeza com as escoladas mãos.
Na sala, Anselmo está de frente para o amigo pintor, e Soledad de costas para a
visita. Então Anselmo abraça a solidão de Soledad. Mas com o queixo sobre o
ombro da companheira, sem que ela o note, ele lhe faz caretas, dá-lhe a língua,
pisca o olho para o companheiro que o espera. Soledad não pode imaginar os trejeitos
que sobre ela Anselmo arma e arranja. Mas o pintor vê o ato e se espanta com a
maldade e representação do ator.
É incrível o espetáculo diante dos seus olhos ali na sala. Anselmo desce as
mãos pelas costas de Soledad, aperta-a nos ombros, enquanto lhe faz caretas e
zomba com a língua estendida. É claro, o pintor não sabe, Anselmo está em um
dos seus papeis. Um dos, a saber, afetuoso companheiro, insultador da ingênua
companheira, da idiota, do repulsivo carinho que ela lhe dá, tão desamparada
para a sua maior desgraça. O segundo ato, antes do terceiro, ele revelará assim
que ultrapassar a porta. Soledad jamais adivinharia, pior, jamais poderia
adivinhar o negócio de homem que Anselmo fala, mais uma vez falando a verdade
em parte, ou a verdade dividida, meia. Como poderia ela saber? Anselmo a beija
com os olhos úmidos, que ela acredita serem de ternura e emoção, mas que se
revelam apenas uma expressão de comicidade, de piada, de efeito do riso que ela
lhe dá, irresistível a ponto de ele trincar os lábios para não romper numa
gargalhada, tão boba, tão besta é a coisa revolucionária. Sem nada saber, ela é
objeto de uma farsa escrita às suas costas, nos relatórios que presta ao
heroico e fodão Fleury. Soledad é uma palhaça de circo sem disso ter a consciência,
assim, tão bonita e lacrimosa, tão infantil em corpo de mulher grande, isso é
uma comédia, que personagem de esquete maravilhosa, mas ali, metida em suas
roupas largas, kafta, bordados pijamas, metida e montada em ser o que não pode,
um Molière com Shakespeare, então ele, o ser artístico, o artista, que sabe o
enredo, que move o destino por cordas como um ator de bonecos, então ele tem os
olhos úmidos de alegria pelo que virá logo mais, úmidos também do quadro cômico
que é a mulher amorosa sem amor, e sorri fino para não gargalhar forte. O
coração de Anselmo compreende as mulheres, mas é uma compreensão sem grandeza,
sem empatia ou generosidade: ele as compreende pelo que elas têm de carência,
mas não como um homem que se curva e abraça aquela carência com a própria
carência. Ele as compreende pela lógica fria, que as vê pequenas, ridículas,
ele as trata e maltrata utilizando-se de outros. Ele sabe o que elas gostam de
falar, ele sabe o que lhes falar, ou seja, ele é o cara mais inteligente que
existe para enlaçá-las e sorrir delas.
E diante da testemunha, Anselmo a beija e lhe estende a língua depois pelas
costas. Este é um quadro que o pintor não pintará por falta de condições
pessoais. ‘Como, se sou parte da farsa também? Mas é inacreditável o que estou
vendo’. Ele já viu e conhece maridos que desprezam a mulher de modo claro. Ele
já viu maridos que se dividem para esposa e amante, mas assim, beijá-la em
público e zombar desse beijo ao mesmo tempo, nunca. ‘Como eu poderia pintá-lo?
Falta-me o talento’.
Mas não era falta de talento, penso hoje. Era uma impossibilidade da arte da
pintura. Como resgatar por imagem na tela um quadro que se desenvolve em amor
aberto, generoso da mulher, e o traidor que a beija e insulta no mesmo
instante? Como ver a mulher grande, que escreve poemas e atira por acreditar em
um novo mundo, misturada ao falso que lhe toca e cospe, num só quadro de dois
personagens ali na sala? Não há decomposição múltipla que a enquadre. Talvez
fosse possível se a pintasse com legendas embaixo da imagem, não de uma só
linha, mas legendas multiplicadas num crescendo, ou seja, o quadro seria
possível com a penetração das palavras, na compreensão que se faz no verbo.
Como uma estrela cuja luz se vê muito depois. Quem sabe? talvez em uma ampliação
da velocidade, mais de 40 anos depois do trauma, no presente renovado dessa
tragédia. Para Anselmo, apenas farsa e comédia, outro gênero teatral. Se há
pouca luz da noite que desce sobre Olinda, se a sala é pouco iluminada em
ambiente de Rembrandt, ainda assim não se faz um quadro. Ele a toca com os
lábios, ele é beijado em resposta, e ofende a pessoa que o beija em um só
movimento”.
Para ela, que agia no sonho da revolução, neste 8 de março de 2019 está de
volta aos palcos do Recife o espetáculo “Soledad – a terra é fogo sob nossos
pés”., Teatro Hermilo Borba Filho. A grande atriz Hilda Torres no papel da
brava às 19 horas, com direito a debate a partir das 20 horas.
E volto ao romance “A mais longa duração da juventude”, em trecho sobre a
heroína do espetáculo hoje à noite:
“Precisava dizer que era linda? Esse era um adjetivo que não lhe caía em cima
como um chapéu, aquele, que deixaria para sua imagem na posteridade. A beleza
não se punha sobre Soledad. Ela era a outra definição da palavra sem que se
pronunciasse o nome ‘beleza’. A sua feminilidade atraía quanto mais a
evitávamos, coisa rara, futuro da sociedade que desejávamos. Aos nascidos para
o vôo, Soledad inspirava receio com seu corpo esguio, quebradiço. ‘Cuidado, ela
vai cair. Cuidado!’.
Mas não houve tempo para o aviso a Soledad Barrett em 1973. Ah, se pudéssemos
voltar, ah se pudéssemos ser o povo que grita para denunciar o vilão no teatro:
- Cuidado! Ele vai te matar!
* Jornalista do Recife. Autor dos
romances “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “A mais longa
Então, para o carinhoso companheiro que sai agora à noite com o pintor, Soledad abre os braços, para abraçar o querido. Por Deus, o quanto ela é calorosa! Por Deus, que calor guarda em suas coxas, por Deus, se pudéssemos voltar no tempo e restaurar os fatos conforme a justiça, ah se pudéssemos ir além do grito agora, ah se fôssemos o povo que grita para denunciar o vilão no palco: cuidado! Mas não, assistimos ao pesadelo com a inteligência inútil, aquela que não muda mais o que se foi. Soledad abre os braços para deixá-los a par com o coração, e a esse amor Anselmo escarra. Para o inferno, por Deus, esta é uma prova da Tua crueldade, faze-nos voltar impotentes até o mundo que seria e não foi. Então Soledad lhe abre os lindos braços, as esperançosas mãos, os frágeis e finos dedos, e seu corpo se abre para o amor que não vem, mas ela por imaginação do querer pensa que virá, então ela abre o seu corpo para o amado. Ele vem e envolve a sua doce delicadeza com as escoladas mãos.
Na sala, Anselmo está de frente para o amigo pintor, e Soledad de costas para a visita. Então Anselmo abraça a solidão de Soledad. Mas com o queixo sobre o ombro da companheira, sem que ela o note, ele lhe faz caretas, dá-lhe a língua, pisca o olho para o companheiro que o espera. Soledad não pode imaginar os trejeitos que sobre ela Anselmo arma e arranja. Mas o pintor vê o ato e se espanta com a maldade e representação do ator.
É incrível o espetáculo diante dos seus olhos ali na sala. Anselmo desce as mãos pelas costas de Soledad, aperta-a nos ombros, enquanto lhe faz caretas e zomba com a língua estendida. É claro, o pintor não sabe, Anselmo está em um dos seus papeis. Um dos, a saber, afetuoso companheiro, insultador da ingênua companheira, da idiota, do repulsivo carinho que ela lhe dá, tão desamparada para a sua maior desgraça. O segundo ato, antes do terceiro, ele revelará assim que ultrapassar a porta. Soledad jamais adivinharia, pior, jamais poderia adivinhar o negócio de homem que Anselmo fala, mais uma vez falando a verdade em parte, ou a verdade dividida, meia. Como poderia ela saber? Anselmo a beija com os olhos úmidos, que ela acredita serem de ternura e emoção, mas que se revelam apenas uma expressão de comicidade, de piada, de efeito do riso que ela lhe dá, irresistível a ponto de ele trincar os lábios para não romper numa gargalhada, tão boba, tão besta é a coisa revolucionária. Sem nada saber, ela é objeto de uma farsa escrita às suas costas, nos relatórios que presta ao heroico e fodão Fleury. Soledad é uma palhaça de circo sem disso ter a consciência, assim, tão bonita e lacrimosa, tão infantil em corpo de mulher grande, isso é uma comédia, que personagem de esquete maravilhosa, mas ali, metida em suas roupas largas, kafta, bordados pijamas, metida e montada em ser o que não pode, um Molière com Shakespeare, então ele, o ser artístico, o artista, que sabe o enredo, que move o destino por cordas como um ator de bonecos, então ele tem os olhos úmidos de alegria pelo que virá logo mais, úmidos também do quadro cômico que é a mulher amorosa sem amor, e sorri fino para não gargalhar forte. O coração de Anselmo compreende as mulheres, mas é uma compreensão sem grandeza, sem empatia ou generosidade: ele as compreende pelo que elas têm de carência, mas não como um homem que se curva e abraça aquela carência com a própria carência. Ele as compreende pela lógica fria, que as vê pequenas, ridículas, ele as trata e maltrata utilizando-se de outros. Ele sabe o que elas gostam de falar, ele sabe o que lhes falar, ou seja, ele é o cara mais inteligente que existe para enlaçá-las e sorrir delas.
E diante da testemunha, Anselmo a beija e lhe estende a língua depois pelas costas. Este é um quadro que o pintor não pintará por falta de condições pessoais. ‘Como, se sou parte da farsa também? Mas é inacreditável o que estou vendo’. Ele já viu e conhece maridos que desprezam a mulher de modo claro. Ele já viu maridos que se dividem para esposa e amante, mas assim, beijá-la em público e zombar desse beijo ao mesmo tempo, nunca. ‘Como eu poderia pintá-lo? Falta-me o talento’.
Mas não era falta de talento, penso hoje. Era uma impossibilidade da arte da pintura. Como resgatar por imagem na tela um quadro que se desenvolve em amor aberto, generoso da mulher, e o traidor que a beija e insulta no mesmo instante? Como ver a mulher grande, que escreve poemas e atira por acreditar em um novo mundo, misturada ao falso que lhe toca e cospe, num só quadro de dois personagens ali na sala? Não há decomposição múltipla que a enquadre. Talvez fosse possível se a pintasse com legendas embaixo da imagem, não de uma só linha, mas legendas multiplicadas num crescendo, ou seja, o quadro seria possível com a penetração das palavras, na compreensão que se faz no verbo. Como uma estrela cuja luz se vê muito depois. Quem sabe? talvez em uma ampliação da velocidade, mais de 40 anos depois do trauma, no presente renovado dessa tragédia. Para Anselmo, apenas farsa e comédia, outro gênero teatral. Se há pouca luz da noite que desce sobre Olinda, se a sala é pouco iluminada em ambiente de Rembrandt, ainda assim não se faz um quadro. Ele a toca com os lábios, ele é beijado em resposta, e ofende a pessoa que o beija em um só movimento”.
Para ela, que agia no sonho da revolução, neste 8 de março de 2019 está de volta aos palcos do Recife o espetáculo “Soledad – a terra é fogo sob nossos pés”., Teatro Hermilo Borba Filho. A grande atriz Hilda Torres no papel da brava às 19 horas, com direito a debate a partir das 20 horas.
E volto ao romance “A mais longa duração da juventude”, em trecho sobre a heroína do espetáculo hoje à noite:
“Precisava dizer que era linda? Esse era um adjetivo que não lhe caía em cima como um chapéu, aquele, que deixaria para sua imagem na posteridade. A beleza não se punha sobre Soledad. Ela era a outra definição da palavra sem que se pronunciasse o nome ‘beleza’. A sua feminilidade atraía quanto mais a evitávamos, coisa rara, futuro da sociedade que desejávamos. Aos nascidos para o vôo, Soledad inspirava receio com seu corpo esguio, quebradiço. ‘Cuidado, ela vai cair. Cuidado!’.
Mas não houve tempo para o aviso a Soledad Barrett em 1973. Ah, se pudéssemos voltar, ah se pudéssemos ser o povo que grita para denunciar o vilão no teatro: - Cuidado! Ele vai te matar!
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