Li Tzu, o mestre taoísta, colocou as ervas em infusão. Eu tinha acabado de chegar na pequena vila chinesa aos pés do Himalaia. Sentado à mesa da cozinha, éramos observados por Meia-noite, o gato negro que também morava na casa. O som suave de um mantra tibetano e o perfume de incensos ajudavam a manter o ambiente tranquilo, bem de acordo com os seus moradores. Conversávamos sobre como manter o controle em relação a si mesmo, sem perder a sensibilidade, e seguir com uma postura serena quando o mundo parece desabar à nossa volta. Falávamos, também, de como é bom estar ao lado de uma pessoa assim quando nos sentimos aflitos e perdidos diante dos emaranhados de situações que nos atravessam a existência. Comentei que a ansiedade era a principal doença da contemporaneidade. Li Tzu explicou: “A origem da ansiedade está no medo. Desejamos controlar os acontecimentos do mundo, aqueles que estão além de nós, os quais não temos nenhum domínio. Pela impossibilidade, nos tornamos dependentes de acontecimentos aleatórios. Sofremos enquanto as situações não se resolvem. Projetamos consequências desastrosas que, na maioria das vezes, nunca acontecerão. Somos corroídos aos poucos. Por ser uma das espécies do medo, escala graus e se acumula dentro da gente. Somatizam em doenças e provocam desequilíbrios emocionais. Isto continuará acontecendo enquanto mantivermos o padrão de pensamento a que fomos condicionados”.
Questionei qual seria o modo de inverter o padrão. Ele aprofundou o raciocínio: “O Tao Te Ching ensina que temos que ir às origens do sofrimento para entender a sua desnecessidade. Os efeitos cessam quando pomos fim à causa”. Ponderei que as suas palavras eram simples, mas não claras o suficiente. Li Tzu prosseguiu: “Não me refiro a um acidente que possa acontecer pelo simples fato de existirmos. Falo dos desastres que causamos dentro de nós pela incompreensão que temos da vida”. Encheu as nossas xícaras com chá e continuou: “Três são as causas do sofrimento. Desconectamos aquilo que precisa ficar conectado; travamos um inevitável processo de transformação; fugimos do medo ao invés de dissolvê-lo”.
Tornei a pedir ao mestre taoísta que fosse mais claro. Ele sempre era atencioso: “Fomos condicionados a pensar que dependemos dos acontecimentos do mundo como fatores determinantes à felicidade, à paz, à dignidade, ao amor e a liberdade. Este é o padrão que precisa de inversão”. Bebeu um gole de chá e ponderou as próprias palavras: “Não falo de sermos insensíveis à vida ao nosso redor. Não há luz sem compaixão, misericórdia e delicadeza. São virtudes indispensáveis às plenitudes. Contudo, fomos educados dentro de um processo mental que nos torna viciados.Precisamos sempre que alguém faça alguma coisa ou que aconteça determinada situação para que possamos nos sentir bem.Assim, o sofrimento não terá fim. Buscamos do lado de fora a solução que apenas existe dentro de nós mesmos. Uma dependência que criamos por acostumar as nossas mentes a pensar de modo equivocado. Vejo as pessoas muito ligadas às notícias do mundo e distantes dos acontecimentos da alma. A falta de conexão consigo faz tudo parecer confuso, apressado e com pouco sentido. A princípio, pode parecer egoísmo, mas é justamente o contrário. Quanto mais firme for a conexão interna, maior será a compreensão externa”.
“O planeta está em constante rotação, pois o movimento é um dos pilares da vida. Tudo muda porque a evolução é uma inexorável lei cósmica. Não há como deter esse fluxo. Aceite que, ao menos por ora, acidentes acontecerão de modo que não podemos impedir, pois são reflexos da psicoesfera planetária, ainda muito densa. Lembre, o mundo vibra ao nível dos seus habitantes e somos um deles. Entende onde podemos atuar de modo efetivo?”, perguntou e apontou para o próprio peito.
“Como temos uma enorme dificuldade em lidar com a inconstância da vida, com os imprevistos, com os acontecimentos além do nosso domínio, sofreremos por insistir em um padrão mental equivocado. Continuamos a buscar desesperadamente por estabilidade nas coisas do mundo e a renegamos dentro de nós. Ficamos pesados por carregar tanta preocupação e sofrimento. Tudo ao redor também se contamina”.
“Quando imaginamos que podemos perder algo que nos causa prazer, conforto ou segurança, sofremos. Por inverter o sentido da vida, nos sentimos inseguros pelas ameaças que se avizinham e ansiosos por não saber como será o amanhã. Então, brigamos para que as coisas fiquem como estão, que nada mude, nem mesmo em nós, contrariando as inevitáveis transformações universais em todos os níveis da existência. Como uma hipotética represa, travamos o inevitável fluxo das transformações. Para seguir, a vida pressionará o dique até que se rompa”.
“Aperfeiçoe o espírito para aprender com as dificuldades. Entenda a necessidade das mudanças como parte essencial ao processo evolutivo, ainda que demore um pouco a encontrar as devidas explicações. Aceite que elas precisam acontecer a todo instante. Dentro e fora de si. Quando nos opomos à vida, a existência perde o gosto e nos conduz pela força”.
“Por fim, concedemos poder ao medo ao invés de entender a sua desnecessidade. Interpretamos personagens socialmente aceitos em busca de aprovação; seguimos modelos ao invés da ousadia de sermos autênticos. Acumulamos mais do que o razoável por recear possíveis intempéries. Vivemos mais o remorso pelos equívocos do passado do que gratidão pela oportunidade de fazer diferente e melhor no presente; tememos a incerteza do futuro quando temos nas mãos o dia de hoje. Se prestarmos atenção, nos daremos conta de que a dificuldade em perdoar consiste no receio de mudar, não apenas a intensidade, mas o jeito de olhar e de amar. O medo se tornou um deus para as sociedades contemporâneas. Ofertamos as nossas vidas no altar dessa divindade sombria”.
Reconheci o sentido das suas palavras, mas questionei por uma solução. O mestre taoísta bebeu mais um gole de chá e explicou: “Pensamos que raiz do medo está no mundo enquanto, em verdade, a sua semente foi plantada em nossa mente e se espalha um pouco mais a cada dia. Sem dúvida, há perigos lá fora. Conquanto, nenhum tão maléfico quanto a se perder de si mesmo. Quando isso acontece, é como deixar uma criança na selva a mercê das feras”. Esvaziou a xícara e concluiu: “O erro está em fugir ou tentar se proteger do medo quando se deve desmanchá-lo no ar”.
Brinquei dizendo que gostaria de conhecer esse mago. Rimos. Eu queria saber como dissolver o medo. Ter esse poder seria maravilhoso. Li Tzu foi didático: “Virtudes, consciência e sabedoria são os três vértices do triangulo sagrado. Sagrado como tudo aquilo que nos aperfeiçoa. São os instrumentos que embalam a canção da vida no baile da eterna evolução. Devem ser tocados em sintonia e em toda a extensão possível, um pouco mais a cada dia”.
“As virtudes são os diferentes atributos do amor, a começar pela humildade até chegar à pureza, passando pela bondade, sinceridade e justiça, entre várias outras, que tanto já falamos. A consciência é a percepção apurada de si mesmo e de tudo ao seu redor. O entendimento de quem sou, de quem ainda me falta ser e como isto é primordial nas minhas relações. A sabedoria é o exercício concomitante das virtudes e da consciência. Um entendimento sereno dos movimentos da vida e das oportunidades de florescer a cada instante. A sabedoria se expressa através de cada uma das nossas infinitas escolhas. Assim desenhamos o triângulo sagrado”.
“O medo é uma doença oriunda de um equivocado padrão mental. A cura ocorre no exercício da leveza e da fé”. O mestre taoísta me perguntou se eu sabia o significado destas preciosas virtudes. Falei que a leveza estava ligada ao desapego, não apenas no aspecto material, mas, sobretudo, às desnecessidades emocionais. Tudo o que preciso está dentro de mim, porém, apenas me aperfeiçoo através das relações que tenho no mundo. O problema é que sempre desejamos mais do que precisamos. Depois, um pouco mais, como mitológicos Sísifos modernos que nunca conseguem levar a pedra ao alto da montanha. Assim, nada nos completa. Isto tem um peso insuportável e agiganta o medo pela sensação de impotência que traz”.
“Do contrário, de quanto menos precisar, mais leve seremos, expliquei. Li Tzu concordou e complementou sobre a necessidade da leveza: “O medo guarda proporção com as nossas dependências. Quanto menor forem os vícios existenciais, maior o poder que teremos sobre o medo”.
Esvaziamos as nossas xícaras. Li Tzu, sempre delicado, tornou a enchê-las. Em seguida, comentou: “Contudo, não basta. A fé é uma indispensável aliada na batalha contra o medo. A fé é uma virtude muito mal compreendida por ter o seu sentido desvirtuado através dos tempos”. Olhou-me com curiosidade e quis saber: “Você sabe o que é a fé?”. Respondi que a fé é diferente da crença. Ter fé não é somente acreditar em um poder maior a nos iluminar e proteger, no compasso de nossos pedidos e desejos. Fé é a consciência de que somos parte indissociável do universo e ele nos habita. Somos oriundos de um mesmo início, de uma única explosão, temos os mesmos átomos. Estamos interligados desde antes de o tempo existir. A energia que move as estrelas é a mesma que me movimenta. A fé é fazer com que esta energia flua dentro e através de mim, me transforme e se manifeste em luz. Como as estrelas, concluí. O mestre taoísta balançou a cabeça como quem diz que concordava. Contudo, acrescentou uma explicação importante: “A fé é a virtude que faz a sintonia entre você e o universo. De que maneira? Faça o seu melhor a cada dia; tenha cuidado em amanhã fazer um pouco melhor e nada lhe faltará. Esta é a Lei do Caminho. Você terá luz e proteção à medida do seu aperfeiçoamento. Essa prática concede um tipo inabalável de coragem conhecida como fé. A leveza enfraquece as ameaças; a fé dissolve o medo”.
Perguntei como poderia me aprofundar sobre as Leis do Caminho. Li Tzu me lembrou: “Lembre do triângulo sagrado. As virtudes, a consciência e as escolhas dialogam com o Caminho e as suas Leis por todo o tempo todo. Nenhuma pergunta ficará sem resposta”.
Essa conversa aconteceu havia muitos anos. Lembrei dela quando uma das minhas filhas me chamou para conversar. Ela tinha cursado a faculdade de Direito. Advogava em um bom escritório e todo os seus atuais amigos também pertenciam a esse círculo jurídico. Era o ar que ela respirava e a sua fonte de sustento. Eu já havia notado algo diferente em seu comportamento. Andava mais introspectiva do que de costume, logo ela, tão alegre e comunicativa. Nunca considerei a introspecção um problema, apenas uma valiosa fase que antecede a uma boa expansão. Aguardei. No entanto, tomei um susto quando ela me disse que pensava em largar o Direito. Não estava feliz com a maneira como vivia, explicou. A sua dificuldade consistia em abrir mão de quase dez anos dedicados a um estudo específico, como se fosse jogar no lixo tudo aquilo que foi vivido. Um desperdício de tempo e dinheiro, descreveu a sensação. Também existia uma incompreensão quanto a ela mesma. Os seus amigos estavam sinceramente animados com o estilo de vida que praticavam. Falavam dos projetos em montarem os próprios escritórios, outros planejavam em ingressar na magistratura. Viviam empolgados com a carreira, enquanto ela se sentia mais deslocada e desanimada a cada dia. Por que não se sentia como eles? Ela queria entender o seu problema.
Por força do hábito e do gosto, marquei de conversarmos em uma cafeteria. Já tinha esvaziado um copo quando ela chegou. Deu-me um abraço apertado e notei uma lágrima rebelde em um dos olhos. Ela disfarçou. Depois me contou o momento pelo qual atravessava. Falou bastante. Ao final, declarou chegada a hora de fazer uma escolha: prosseguir ou recomeçar. Havia prós e contras em qualquer das decisões, ponderou. Ela fez questão de mostrar que tinha pensado bastante sobre o assunto. Contou ter se interessado em fazer um mestrado em Literatura, na área de Estudos Editoriais. Tinha um caso de amor com os livros desde sempre. Era uma escolha difícil por ser angular. Mudaria o rumo da sua existência. Alegou que no Direito tinha conseguido subir muitos degraus dentro da carreira, conquistas que ficariam para trás. Pior, sem a certeza daquilo que viria. Sofria muito com este impasse e se confessou indecisa.
Brinquei ao dizer que só falaria diante de mais um copo de café: “É o meu preço”. Ela riu e foi buscar no balcão. Na volta, expus para ela: “Não existe indecisão, apenas medo”.
Ela me olhou como quem diz não entender. Eu expliquei: “A escolha você já fez. O medo não permite que você se apodere dela. Isto a afasta de si mesma. Por isto o sofrimento”.
Era como se o Li Tzu estivesse sentado à mesa conosco. Eu quase conseguia vê-lo com o seu sorriso suave e olhar sereno, enquanto falava para a minha filha: “Quando abandonamos os nossos sonhos e dons, desconectamos uma parte de nós. Passamos a ser menos do que poderíamos. Este processo faz sofrer por nos afastar da nossa essência. No mais, você está interrompendo o seu processo de transformação. Isto também causa dor”.
Tive a sensação de que o mestre taoísta sorria para mim. Ela me interrompeu para lembrar da empolgação que contagiava os seus colegas de Direito, mas não a envolvia. Argumentei: “Entenda que a sua jornada evolutiva é diferente. Ninguém é igual a ninguém. Isto nos torna únicos e somente isso nos faz belos”.
“O sofrimento surge quando, por padrão, projetamos as nossas vidas espelhadas no sucesso de vidas alheias. Esse condicionamento mental é como um software, instalado em fábricas ancestrais, que sempre apresentou mau funcionamento. Contudo, insistimos. Esperamos por algo que, dessa maneira, nunca virá. Como método, se mostra imprestável pelas singularidades que envolvem cada pessoa”.
“Mudar o padrão é entender que, assim como todas as pessoas, você não é igual a ninguém. Nem melhor nem pior, apenas diferente”.
“Interrompemos a evolução quando teimamos em seguir por um caminho que não é o nosso. Algo vital dentro da gente também se desliga. Um padrão que se manifesta em sofrimento. A solução está em não negar a sua própria originalidade. Caminhe de um jeito que só você sabe.”. Bebi um gole de café e sugeri: “Entenda quem você é, perceba os seus gostos, expanda as suas habilidades, aquilo que a mantém iluminada, acredite no seu olhar, principalmente quando ele mostra coisas que ninguém mais consegue ver. Seja intensa, mas seja leve. Para ser inteiro é preciso ter fé em si mesmo. Crie o seu próprio padrão de ser e viver. Somente ele a levará às plenitudes”.
Ela me disse que não era fácil. Como editora, teria um mercado de trabalho bem mais restrito em oportunidades do que uma carreira como advogada. Ganharia bem menos também. Questionei a ela: “Qual das coisas interessa mais, ser rica ou ser você mesma?”. Bebi um gole de café e avisei: “Uma coisa não anula a outra, mas é preciso montar uma escala de prioridades. São escolhas que definem o destino próximo”.
A minha filha revelou o temor de nem ao menos conseguir um emprego depois do mestrado em Estudos Editoriais. Fui sincero: “Não será fácil. Contudo, tenha fé em si mesmo, isto equivale a ter fé na vida. Faça o seu melhor a cada dia sem perder a leveza. Desta maneira, não duvide nem sinta medo, a vida protegerá e iluminará os seus passos”.
Em seguida, ela questionou se já passara da hora de realizar mudanças tão radicais. Talvez fosse melhor aceitar as escolhas que tinha feito no passado, até porque seria um desperdício jogar fora tantos anos de estudos. Orientei-a: “Agora você retorna ao discurso do medo. Lembre,nada se perde, tudo se transforma. Esta foi uma das valiosas lições deixadas pelo alquimista francês”.
“Todos, em algum momento, se perdem nas veredas da existência. Ficamos mais forte ao voltar à estrada da vida, aquela que nos leva à própria alma, onde encontraremos com a alma do mundo”.
“No mais, o medo nunca foi um bom conselheiro. Ele nos faz andar em sentido contrário à verdade que nos habita. Afasta-nos do amor e nos deixa na escuridão por nos desconectar da nossa própria luz. Ficamos mais fraco a cada dia”. Bebi mais um gole de café e prossegui: “Nunca é tarde para mudar e ser pleno. Todos os dias são bons para conhecer quem sou, tudo aquilo em que posso me transformar e descobrir a magia sem fim que a vida me reservou. A única revolução da existência acontece dentro de nós. É a evolução pessoal das virtudes, da consciência e das escolhas. Cada um impõe o próprio limite”.
Não por acaso, entrou na cafeteria uma colega de trabalho da minha filha. Elegante, bonita e educada, nos cumprimentou com gentileza. Uma moça muito agradável. Empolgada, disse que estava indo a uma audiência e perguntou à minha filha se queria acompanhá-la. Era o julgamento de um importante processo judicial, muito comentado nos jornais. Havia uma sincera animação em sua voz. Por fração de segundo, tive uma troca de olhares com a minha menina que dispensou qualquer palavra. “Seja virtuosa e ouça a sua consciência. Seja qual for, ela lhe mostrará a melhor escolha. Não para mim nem para ninguém. Apenas para você”. Era o que eu teria dito e foi exatamente o que ela entendeu.
Após a recusa do convite, se despediram. Tornamos a ficar a sós. A minha filha piscou um olho, de jeito jovial e alegre como há muito não acontecia, e disse: “Não há duas histórias iguais. Salvo por farsa ou plágio, ambas são tragédias vulgares. A literatura nos ensina isso”. Em seguida, disse que iria ao escritório. Naquele mesmo dia pediria demissão e se matricularia no mestrado. Tinha um sorriso no rosto que apenas a mais linda das poesias seria capaz de traduzir. Deu-me um beijo e saiu aos pulos como uma menina que acabou de passar por uma prova difícil na escola.
Como um doido, eu sorria sozinho, enquanto observava o Li Tzu dançar por entre as mesas da cafeteria. Esperei os sentimentos e ideias assentarem. Em silêncio, agradeci ao mestre taoísta, esvaziei o meu copo e fui embora.
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