quinta-feira, 23 de abril de 2020

CRÔNICA - MARTHA MEDEIROS - ENFIM SÓS








Ela mora sozinha há muitos anos. Gosta, pois leva a vida do jeito que quer, não há ninguém em volta fiscalizando as manias. Mas sente uma ponta de inveja de lares ocupados por muita gente, famílias numerosas. Preferiria ser mais requisitada, já que são longos os momentos sem companhia. Já a ouvi reclamar de passar um dia inteiro sem escutar a própria voz. Até que veio o coronavírus e obrigou o isolamento de todos. Deixou de ser uma escolha, e sim um ato compulsório. E, para minha surpresa, ela não reclama mais, está adorando os dias de leitura, introspecção e silêncio. Mas se a rotina já era desse jeito, o que mudou?
É que agora não é só ela que está em casa, mas toda a cidade. Ela já não é diferente da maioria dos amigos. A solidão deixou de ser um problema apenas dela. É um assunto que sempre me atraiu. Acredito que ter uma relação cordial com a solidão é a saída para evitar perturbações mentais. Quem encara a solidão como uma terrível ameaça acaba comprometendo as experiências afetivas. Os vínculos se tornam asfixiantes em vez de naturais. As relações sociais tornam-se mais obrigatórias do que espontâneas. É difícil aceitar que as pessoas chegam, ficam e um dia vão embora de nossas vidas. Essa dinâmica inevitável nos obriga a passar por momentos de resguardo eventual ou prolongado, o que conduz a um encontro profundo com a gente mesmo. Para alguns, é assustador.
Não sou nenhuma ermitã e considero que ter amigos é sagrado. Lamento pelos que se encarceram numa existência sem vínculos – essa, sim, uma solidão corrosiva. Bem diferente de quem pode se dar ao luxo de passar temporadas sem contato, pois sabe que não existe distância entre os que preservam laços vitalícios. Muitas pessoas moram sós.
"Quando a pandemia passar, voltarão a caminhar pelas ruas, ir a bares, ao cinema, encontrarão pessoas e continuarão sós, e não há vergonha nenhuma nisso. Sei que conviver é fundamental, um hábito que até ajuda a imunizar: ficamos mais saudáveis ao sermos tocados, abraçados, beijados. Mas não precisamos ter nossa vida testemunhada 24 horas por dia.

Sozinhos, agimos como anjos. Não mentimos, não julgamos os outros, não agredimos ninguém. “Sozinha não há céu que me rejeite” – verso de um poema que escrevi 25 anos atrás, quando me parecia interessante esse benefício da solidão: a de impedir que fôssemos uns malas. Hoje se mente, se julga e se agride pelo Twitter, pelo Facebook. Meu verso caducou. Então, aproveitemos o cativeiro para valorizar as demais vantagens da solidão: autoconhecimento, paz de espírito, concentração, relaxamento. E, se conseguirmos ignorar o celular (como há 25 anos, quando ele não existia), a vantagem sublime de não sermos atazanados e de não atazanar ninguém.

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