Neste mês de março quero homenagear pessoas que fazem a diferença na nossa sociedade, e para começar, por que não Lucinha Araújo? É ela que cuida até hoje da memória do seu filho e leva adiante a Sociedade Viva Cazuza para crianças portadoras do vírus da aids; também encabeça uma campanha contra o preconceito e a desinformação em torno da doença.
Lucinha Araújo, com muita sensibilidade e emoção,relata os grandes momentos em que viveu ao lado do seu único filho, Cazuza. O livro mexe conosco do início ao fim, começa com a morte de Cazuza, seus últimos dias lutando contra a Aids, uma doença que na década de 80 era desconhecida, cercada por preconceito e falta de informação, além de dificuldades no tratamento. Deixou-me um pouco impactada, pois me reportei a momentos em que vivi e vi um primo morrer na década de 90 pela mesma doença.
O livro faz uma trajetória da vida de Cazuza e de como tudo começou..perpassa um pouco pela história familiar de Lucinha e do seu futuro companheiro: João Araújo, pai de Cazuza.Nos comovemos a cada página quando nos identificamos com alguns dos muitos questionamentos que são feitos por Lucinha, o ser humano que erra, acerta, ama...e mais do que tudo, tenta fazer e dar o seu melhor. Em um dos seus questionamentos:
“Sinto não ter tido mais tempo para aprender a compreendê-lo e fazer com que perdoasse os erros do passado: o excesso de zelo, a cegueira que me impedia de ver o poeta que ele era, e aproveitar um pouco mais do artista inconformado em que se revelou. Queria que me perdoasse, por ter dado importância a coisas tão pequenas, nas quais eu acreditava como verdade suprema. Que me perdoasse por tê-lo sonhado à minha imagem e semelhança e a forçar que ele pautasse sua vida, que apenas começava, em convenções inúteis.”
Acredito que Cazuza veio para revolucionar a própria família, os valores, as convenções como a própria mãe comenta, pois sendo um burguês, muitas vezes não se sentia como tal e uma das formas de desconstruir, era agredir. Algumas vezes, utilizava uma agressão poética; outras física. O menino que queria mudar o mundo, tinha sede de ter uma ideologia para viver. De sentir todos os prazeres que houvesse nesta vida.
Lucinha começa a por em prática tudo o que ensinou a esse herói e resolve através desta biografia seguir o exemplo de seu filho e declarar, contar, revelar e compartilhar conosco um pouco da sua dor e do seu grande amor pelo filho, segundo ela: “E foi quando resolvi dar um basta na importância preconceituosa e pobre de espírito dos segredos, das dissimulações e das mentiras. E imaginei que a trajetória de Cazuza talvez pudesse ajudar a salvar almas, além de vidas. Decidi que minha relação com ele merecia ser passada a limpo.”
Cazuza até os 14 anos era uma criança que não dava muito trabalho, houve momentos de sua vida de muita introspecção. Depois, começou a se rebelar e como a própria Lucinha comenta: “Foram inúmeras às vezes em que escondi de meu marido as transgressões cada vez mais freqüentes de Cazuza. Nem quando ele assaltava o guarda-roupa de João, nem mesmo quando sumiu o valioso relógio Vacheron Constantin. Há algum tempo, eu não via com bons olhos os amigos de meu filho. Ele levava todos para casa e ai de mim se dissesse qualquer coisa, que enxergasse algum defeito em qualquer um deles.”
Com esta fragilidade de Lucinha, Cazuza percebeu que podia tudo, pois aquela mãe autoritária já não estava exercendo mais tanto poder sobre ele. Cazuza chegava ao ponto de perguntar: “– Mamãe, se a gente estivesse num barco afundando, qual dos dois você salvaria: eu ou o papai? Nunca pude lhe responder. Terminava a conversa dizendo que eu preferia morrer junto só para não ter que escolher.”
Lucinha faz uma auto-análise deste seu comportamento na época e reflete que neste jogo de esconde-esconde nunca agiu corretamente. Embora tivesse essa rebeldia quando adolescente, mas existia um lado de Cazuza super-humano e sensível. Quando sua avó materna faleceu, aos 67 anos de um infarto, ele tinha 17 anos e ao presenciar aquele quadro, registrou seus sentimentos que ficaram gravados no do túmulo da avó Alice, em Vassouras. Para Lucinha, aquele poema foi a sua primeira manifestação poética, até então desconhecida: Você foi embora / deixou vazia a casa / o riso num álbum de fotografias/ e aquela imagem de Santa Rita.../ e eu fiquei lá fora/ brincando de cidade deserta/ chupando manga/ pedindo um beijo.../ e agora é a velha história/você virou saudade/ daqueles tempos de carochinha/ daquela vida que eu inventei/ daquela reza que decorei.../ agora eu vou vivendo/ no mundo sem sonho ou lenda/ e só de noite, quando me lembro/ eu sinto um troço no meu peito/ e durmo.../Seu neto
Outro momento que foi forte e de grande revelação para Lucinha foi quando leu uma carta amorosa de Cazuza endereçada a um homem, então resolveu enfrentá-lo e interrogá-lo: – Meu filho, você é homossexual? A resposta veio clara e equilibrada, mas não tranqüilizadora: – Olha, mamãe, eu não sou nem uma coisa, nem outra, porque nada é definitivo na vida. Você pode dizer que eu seja bissexual, porque não fiz minha escolha ainda.”
O livro é muito intenso e o poeta chamado Cazuza, que não tardou em dizer que a cara da morte estava viva, começa a observar que algumas coisas em sua vida mudam, como: febres, infecção... No dia 26 de Abril de 1987 o médico revelou aos pais de que Cazuza havia sido tocado pela AIDS. Três dias após, o próprio Cazuza fica sabendo da notícia, então revela a um de seus melhores amigos: “– Zeca, eu sei que todo homem que nasce morre um dia, mas eu não mereço isso!”A partir deste momento, imaginem todo o amor que houver nesta vida intensificado para Cazuza, tanto o amor dos pais como dos amigos. Há momentos no livro de pura tensão e emoção.
A última aparição pública de Cazuza aconteceu em 2 de junho, aniversário de Flora Gil.Cazuza, Lucinha, João e Ana (a enfermeira) foram os primeiros a chegar. Ele quis ter uma conversa a sós com Gil e este depois relata o que Cazuza havia lhe confessado. Fazia pouco tempo que Gil perdera o seu filho Pedro, num acidente de carro: “Disse que havia tido um coma profundo, que ele descrevia como sendo o portal da morte. E me contou como tinha sido bom, da sensação agradável que sentiu, uma sensação diáfana, cheia de luzes. Ele ficou fascinado com a experiência e disse que, depois dela, havia pensado muito em mim e imaginou que eu teria interesse em saber.”
Três meses após a morte de Cazuza , Lucinha se envolveu num projeto social fundando a Sociedade Viva Cazuza em que ela relata ser o seu alimento.
Nesta obra temos vários dos pensamentos de Cazuza, dentre muitos cito dois que nos faz perceber um pouco da personalidade deste ser que viveu intensamente, sem medo e sem freios. Exibindo este lado marginal como decisão poética.
“ Fiquei mais místico, aprendi a aceitar o amor e o ódio. A vida é para ser aceita. Se você não aceita, você é infeliz.”
“ Fiquei mais místico, aprendi a aceitar o amor e o ódio. A vida é para ser aceita. Se você não aceita, você é infeliz.”
''Espero que, no futuro, não se esqueçam do poeta que sou. Que as pessoas não se esqueçam de que, mesmo num mundo eletrônico, o amor existe. Existem o romance e a poesia. Que mais crianças venham a nascer e é fundamental o amor aos pais''
Não fui mãe, mas tenho certeza de que, “só as mães são felizes”, pois o filho como diz Saramago : “Filho é um ser que nos foi emprestado para um curso intensivo de como amar alguém além de nós mesmos, de como mudar nossos piores defeitos para darmos os melhores exemplos e de aprendermos a ter coragem.”
É com este pensamento que parabenizo Lucinha Araújo pela sua coragem e depoimento.
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