Queridos amigos e amigas:
No Brasil ocorre um genocídio! No momento em que escrevo, 16/7/2020, a Covid-19, surgida aqui em fevereiro deste ano, já matou 76 mil pessoas. Já são quase 2 milhões de infectados. Até domingo, 19/7/2020, chegaremos a 80 mil vítimas fatais. É possível que agora, ao você ler este apelo dramático, já cheguem a 100 mil.
Quando lembro que na guerra do Vietnã, ao longo de 20 anos, 58 mil vidas de militares usamericanos foram sacrificadas, tenho o alcance da gravidade do que ocorre em meu país (Brasil). Esse horror causa indignação e revolta. E todos/as sabemos que medidas de precaução e restrição, adotadas em tantos outros países, poderiam ter evitado tamanha mortandade.
Esse genocídio não resulta da indiferença do governo Bolsonaro. É intencional. Bolsonaro se compraz da morte alheia. Quando deputado federal, em entrevista à TV, em 1999, ele declarou: “Através do voto você não vai mudar nada nesse país, nada, absolutamente nada! Só vai mudar, infelizmente, se um dia partirmos para uma guerra civil aqui dentro, e fazendo o trabalho que o regime militar não fez: matando uns 30 mil”.
Ao votar a favor do impeachment da presidente Dilma, ofertou seu voto à memória do mais notório torturador do Exército, o coronel Brilhante Ustra.
Por ser tão obcecado pela morte, uma de suas principais políticas de governo é a liberação do comércio de armas e munições. Questionado à porta do palácio presidencial se não se importava com as vítimas da pandemia, respondeu: “Não estou acreditando nesses números” (27/3/2020, 92 mortes); “Todos nós iremos morrer um dia” (29/3/2020, 136 mortes); “E daí? Quer que eu faça o quê?” (28/4/2020, 5.017 mortes).
Por que essa política necrófila? Desde o início ele declarou que o importante não era salvar vidas, e sim a economia. Daí sua recusa em decretar lockdown, acatar as orientações da OMS e importar respiradores e equipamentos de proteção individual. Foi preciso a Suprema Corte (STF) delegar essa responsabilidade a governadores e prefeitos.
Bolsonaro sequer respeitou a autoridade de seus próprios ministros da Saúde. Desde fevereiro o Brasil teve dois, ambos demitidos por se recusarem a adotar a mesma atitude do presidente. Agora, à frente do ministério, está o general Pazuello, que nada entende de questão sanitária; tentou ocultar os dados sobre a evolução dos números de vítimas do coronavírus; empregou 38 militares em funções importantes do ministério, sem a requerida qualificação; e cancelou as entrevistas diárias pelas quais a população recebia orientação.
Seria exaustivo enumerar aqui quantas medidas de liberação de recursos para socorro das vítimas e das famílias de baixa renda (mais de 100 milhões de brasileiros) jamais foram efetivadas.
As razões da intencionalidade criminosa do governo Bolsonaro são evidentes. Deixar morrer os idosos, para economizar recursos da Previdência Social. Deixar morrer os portadores de doenças preexistentes, para economizar recursos do SUS, o sistema nacional de saúde. Deixar morrer os pobres, para economizar recursos do Bolsa Família e de outros programas sociais destinados aos 52,5 milhões de brasileiros que vivem na pobreza e aos 13,5 milhões que se encontram na extrema pobreza. (Dados do governo federal).
Não satisfeito com tais medidas letais, agora o presidente vetou, no projeto de lei sancionado a 3/7/2020, o trecho que obrigava o uso de máscaras em estabelecimentos comerciais, templos religiosos e instituições de ensino. Vetou também a imposição de multas para quem descumprir as regras e a obrigação do governo de distribuir máscaras para os mais pobres, principais vítimas da Covid-19, e aos presos (750 mil). Esses vetos, no entanto, não anulam legislações locais que já estabelecem a obrigatoriedade do uso de máscara.
Em 8/7/2020, Bolsonaro derrubou trechos da lei, aprovada pelo Senado, que obrigavam o governo a fornecer água potável e materiais de higiene e limpeza, instalação de internet e distribuição de cestas básicas, sementes e ferramentas agrícolas, para aldeias indígenas. Vetou também verba emergencial destinada à saúde indígena, bem como facilitar o acesso de indígenas e quilombolas ao auxílio emergencial de 600 reais (100 euros ou 120 dólares) por três meses. Vetou ainda a obrigação de o governo oferecer mais leitos hospitalares, ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea a povos indígenas e quilombolas.
Indígenas e quilombolas têm sido dizimados pela crescente devastação socioambiental, em especial na Amazônia.
Por favor, divulguem ao máximo esse crime de lesa-humanidade. É preciso que as denúncias do que ocorre no Brasil cheguem à mídia de seu país, às redes digitais, ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, e ao Tribunal Internacional de Haia, bem como aos bancos e empresas que abrigam investidores tão cobiçados pelo governo Bolsonaro.
Muito antes de o jornal The Economist fazê-lo, nas redes digitais trato o presidente por BolsoNero – enquanto Roma arde em chamas, ele toca lira e faz propaganda da cloroquina, remédio sem nenhuma eficácia científica contra o novo coronavírus. Porém, seus fabricantes são aliados políticos do presidente…
Agradeço seu solidário interesse em divulgar esta carta. Só a pressão vinda do exterior será capaz de deter o genocídio que assola o nosso querido e maravilhoso Brasil.
Fraternalmente,
Frei Betto, dia 16/7/2020, dia de Nossa Senhora do Carmo.
Frei Betto é frade dominicano e escritor, assessor da FAO e de movimentos sociais.
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Confira a entrevista que Frei Betto concedeu ao Jornal Brasil de Fato, na íntegra, abaixo.
Brasil de Fato – Em 2019, 43,1 milhões de pessoas foram afetadas pela insegurança alimentar moderada e severa no Brasil. É um contingente muito grande de pessoas. O que nos levou a chegar a essa marca?
Frei Betto – Isso é mais do que a população da maioria dos países da América Latina. É óbvio que os que no levou a alcançar essa marca foi a falta de uma política de segurança alimentar do governo Bolsonero, considerando o genocídio que se produz nesse país, especialmente em cima do surto do novo coronavírus.
Ou seja, no dia em que estamos falando, 73 mil pessoas, desde março, faleceram por descaso do nosso governo. Quando penso que em um país como Cuba, faleceram 86 pessoas, em um país como o Vietnã, nenhuma pessoa, porque os governos tomaram as medidas de precaução… Aqui não. Aqui, realmente, o governo é cúmplice do genocídio e dessa mortandade.
Há várias políticas para salvar vidas que foram articuladas no Brasil durante os 13 anos do governo do PT e todas elas estão sendo desarticuladas e desmontadas. Isso vale para a questão trabalhista, previdenciária, proteção dos povos indígenas, dos quilombolas.
Todas as medidas de proteção da vida dos mais pobres estão sendo totalmente desmontadas em uma política intencional de genocídio. Isso exemplificado nessa semana, quando o presidente veta o dispositivo da lei de precauções sanitárias, que previa a doação de máscaras para pessoas presas.
E já são mais de 700 presos infectados no Brasil, inclusive um deputado que estava preso lá no Paraná, Meurer, primeiro condenado da Lava Jato. Preso, 78 anos, morreu antes de ontem. Já são 72 presos mortos. Quando o presidente assina um decreto vetando que se distribua máscara, uma coisa muito simples, é porque ele quer que os presos morram. Não é que isso representa um gasto, é porque para ele, “bandido bom é bandido morto”. Exatamente o lema dos esquadrões da morte, das milícias, dos gabinetes de ódio.
Eu creio que a razão do aumento da insegurança alimentar no país e das pessoas em situação de fome, é em decorrência da falta de uma política de atenção básica da nossa população.
O que é mais grave é que mesmo esse auxílio emergencial não é suficiente. Primeiro, 70 milhões de pessoas se alistaram, muito mais que o previsto, o que revela que existe um contingente de pessoas em extrema pobreza muito maior do que se pensava. Segundo, dessas, os recursos chegaram a apenas 49%. Ou seja, há uma margem de recursos que foi destinado para os mais pobres, teoricamente, no papel, e não chega a eles.
E terceiro, muitos oportunistas, bandidos, corruptos e aproveitadores, inclusive recrutas e oficiais das Forças Armadas. Muita gente que não merece se inscreveu e recebeu. Enquanto inúmeros outros que necessitam, precisam, estão na extrema pobreza, por conta da burocracia, falta de internet, pessoas desprovidas desses recursos tecnológicos, ficam sem receber.
Em relação às políticas que ajudaram a retirada do Brasil do Mapa da Fome, qual o peso de programas como o Bolsa Família, por exemplo? Como o senhor avalia a forma que o governo lida com esse programa?
Ele lida constrangido. Primeiro, ele gostaria que esse programa não existisse. Segundo, ele se sente constrangido por esse programa não ter sido uma criação dele, foi uma criação do PT. Que primeiro criou o Fome Zero onde eu trabalhei. Depois o Fome Zero ganhou o nome de Bolsa Família quando houve uma mudança de sua estrutura.
Devo dizer, mudança da qual discordei. O Fome Zero como estava concebido tinha um alcance emancipatório. A família que entrasse no Fome Zero estaria autônoma, sem depender de recursos do governo federal. O Bolsa Família é muito bom mas é compensatório, não é emancipatório. Portanto a família que entra não pode sair. Se sair, corre o risco de voltar para a extrema pobreza.
Aliás, caso algum leitor ou ouvinte esteja interessado em conhecer os detalhes disso, está tudo descrito no meu livro Calendário do poder. Um diário do meu trabalho quando assessor especial do presidente Lula para o Fome Zero. Um livro da editora Rocco. E também no meu site, onde podem obter o livro até mesmo mais barato.
Pois bem. Essas políticas de segurança alimentar adotadas no Bolsa Família, um programa que eu aplaudo devido à importância que ele tem.. Mais de 50 milhões de famílias beneficiadas. Mas o governo Bolsonaro não tem interesse em ampliá-lo. Hoje existe uma fila imensa de pessoas, quase 1 milhão, esperando a adesão.
E agora isso vai aumentar. O desemprego oficial já era, no início da pandemia, de 12 milhões de pessoas. Agora, com o início da pandemia, esse número chega a 28 milhões de pessoas. Imagina, 28 milhões de pessoas em uma população com 100 milhões de trabalhadores economicamente ativos. Somos 200 milhões de habitantes e todos somos sustentados por esses 100 milhões que trabalham.
É muito grave o que vem acontecendo porque a pandemia aumentou o desemprego e aumentou a insegurança trabalhista. As questões trabalhistas já vinham sendo sucateadas desde a reforma trabalhista.
Uma série de medidas foram adotadas para colocar no chão todas as conquistas da classe trabalhadora que estavam consolidadas na CLT. Isso tudo foi desarticulado com as reformas trabalhistas e previdenciárias. E hoje temos uma uberização do trabalho. Cada vez mais o empregado é praticamente um escravo, realmente não tem garantias.
E ele tem que trabalhar muito e excessivamente para conseguir assegurar o mínimo de sobrevivência. Por isso é muito importante essa reação dos entregadores de encomendas, os motoboys entregadores têm feito ultimamente.
Em meio à pandemia, a discussão colocada pelo governo criou uma polarização entre a economia e saúde. E estamos assistindo reaberturas consideradas precipitadas por médicos e especialistas da área da saúde? Como o senhor avalia essa postura e esse processo de resposta à pandemia?
É um dilema totalmente falso. Primeiro porque a economia não é concebida no Brasil em função da maioria da população. É concebida em função dos detentores do capital. Em função da elite, daqueles que têm acesso à aplicações financeiras na Bolsa de Valores.
Então, na verdade, a proposta genocida do governo é “vamos deixar que morram os brasileiros, sobretudo os mais vulneráveis, os pobres, os idosos, os que têm doenças pré-existentes, porque isso irá trazer uma economia de recursos”. Explico: Se não se toma nenhuma providência para deter a pandemia, que foi a opção do Bolsonaro, você tem maior mortandade entre os oneráveis.
Primeiros os idosos. Ora, morrer muitos idosos representa uma grande economia pro INSS. Segundo, os que têm doença pré-existente. Se morrerem esses, é uma grande economia para o SUS. E terceiro, morrendo os mais pobres, uma grande economia para o Bolsa Família e outras medidas de proteção social.
É esse o panorama. Não existe dilema. Na verdade é isso: “Que se danem as pessoas de classe C, D e E no Brasil” e salvemos as classes A e B”. A classe alta e a média alta. Isso que importa ao governo.
Como o Estado brasileiro deveria estar agindo nesse momento? Qual o papel do Estado em meio à crises como essa?
O que o Estado deveria fazer, nesse governo, seja com Bolsonaro ou com Mourão, não tem nenhuma perspectiva. A pergunta que temos que fazer é o que o povo brasileiro deve fazer. O que os movimentos sociais, as instituições democráticas e os partidos progressistas devem fazer. Temos que agir cada vez mais. É uma atrocidade o que vem acontecendo em nosso país.
É preciso pressionar cada vez mais o Congresso para tomar medidas contrárias a essas que o Bolsonaro tem assinado, medidas provisórias que ele propõe. E no momento que a pandemia cessar, vamos para rua. Não tem outro jeito. Vamos ocupar as ruas como já tinha começado no início da pandemia, para manifestar a nossa insatisfação e tentar mudar esse quadro político. Não dá pra pensar na possibilidade de conviver mais dois anos e meio com um governo genocida.
Um governo geocida porque a questão do desmatamento da Amazônia, da desproteção ambiental, de deixar passar a boiada, favorecer as mineradoras do garimpo ilegal, permitir invasão das áreas indígenas. Tudo isso é uma desgraça absoluta sobre o Brasil, uma desgraça absoluta sobre o Brasil. E só há uma possibilidade de deter esse processo, que é a mobilização popular.
A Oxfam divulgou um estudo recentemente, apontando que o Brasil está entre os prováveis epicentros da fome no mundo em meio à pandemia. Nesse sentido, gostaria de te perguntar sobre a situação das políticas de soberania alimentar e nutricional, principalmente no campo.
Na verdade, as boas políticas que existem são feitas pelos movimentos populares, como o MST. Nos seus acampamentos e assentamentos, o MST tem implementando medidas que são mundialmente exemplares e que tem dado muito resultado. Agora, da parte do governo não há nada. O governo acabou com o Consea, desarticulou todos os mecanismos que deveriam assegurar a seguridade alimentar e levaram o Brasil a sair do Mapa do Fome. Nós corremos o risco de voltar.
Vem aumentando o número de pessoas em situação de risco grave de desnutrição. Até porque, com a pandemia, há um aumento no preço dos alimentos. Em decorrência da falta de transporte, a questão do isolamento social, em decorrência do desemprego muito grande principalmente nas áreas de transporte, serviços, agricultura e etc.
Por exemplo, no interior de São Paulo tem muitas colheitas que sazonalmente atraem trabalhadores de outras regiões do país. Isso agora se tornou mais difícil. Outro dia mesmo vi uma cena terrível. Em Santa Catarina, jogando em um foço, milhares e milhares de frutas, porque não havia como escoá-las. Um pouco aquela política de ao invés de distribuir, joga-se no lixo para que o preço do produto não caia.
Então é muito difícil que o Brasil continue fora do Mapa da Fome. Nós estamos em uma situação séria. A única solução hoje, como tem sido adotada agora na pandemia, é a mobilização social. Vejo aqui nas favelas de São Paulo, principalmente a Central de Movimentos Populares tem feito um excelente trabalho de coletas de recursos para compra e distribuição de cestas básicas.
Isso tem que ser intensificado, é muito importante porque, como dizia Betinho, a fome tem pressa. São muitas famílias desamparadas, principalmente as que são chefiadas por mulheres. Sabemos que 40% da força de trabalho brasileira está na informalidade, são trabalhadores informais. E a maioria são mulheres que não têm o mesmo salário que os homens, e ao mesmo tempo, elas têm uma dupla jornada de trabalho. O trabalho fora de casa e o trabalho dentro de casa. Cuidar da casa e das crianças, dos filhos.
Um governo minimamente decente, minimamente justo, deveria se preocupar com esses seguimentos vulneráveis e garantir, como outros países tem feito, não só a segurança alimentar mais uma renda básica.
Eu creio que a ideia do Suplicy, da renda básica universal, é cada vez mais premente. É preciso que governos do mundo inteiro adotem para toda a população, independentemente de etnia, de sexo, de idade, uma renda básica mínima. O resultado está provado nos poucos países que fizeram isso, o resultado é altamente positivo.
Ninguém vai morar na rua, ninguém vai para a criminalidade, por vontade própria. Por isso que eu digo: Não existem pessoas pobres, existem pessoas empobrecidas. Ninguém quer viver na pobreza. As pessoas que estão nessa situação foram estruturalmente levadas a ela. E fazem tudo para tentar sair. Seja pelo esforço do trabalho, pela sorte na loteria, pelo milagre na igreja da esquina, seja pela criminalidade.
Ninguém se conforma em viver privado de bem essenciais, principalmente os três básicos na garantia de direitos humanos. Pela ordem são: alimentação, saúde e educação.
O senhor falou sobre a questão do desperdício da comida, do aumento do preço. Quais ações emergenciais para os pequenos agricultores poderiam ser tomadas nesse momento, tendo em vista a importância dessa produção?
Os pequenos agricultores garantem 70% dos alimentos que chegam à nossa mesa. As grandes empresas produzem para a exportação, não para o mercado interno. A mesa do brasileiro é 70% assegurada pela agricultura familiar.
Nos governos do PT, várias medidas altamente positivas foram adotadas para incentivar a agricultura familiar, para dar a ela segurança mesmo em períodos de entressafras. O que também foi feito com os pescadores. Não é o ano inteiro que eles podem buscar o peixe no mar, então o governo assegurou um complemento de recurso pelos quais eles tinham a renda garantida. Isso tudo tem sido desmontado, anulado, negado.
Creio que aí está a pressão importante também do povo do campo com apoio da cidade. Não existe isso da luta ser só de um. A luta dele deve ser a de todos nós. Há um avanço criminoso do latifúndio, do agronegócio e das mineradoras também sobre a agricultura familiar. Aconteceu algo que é uma tragédia que faz esse setor pensar.
Por exemplo, os frigoríficos. O Brasil é um grande exportador de carne. Muitos frigoríficos estão paralisados, seja porque a maioria dos trabalhadores pegaram a covid-19, ou devido aos importadores, como aconteceu com a China, suspenderam a importação.
A China suspendeu a importação de carne de 3 grandes frigoríficos no Brasil porque a carne que chegou lá estava também contaminada. Isso vai obrigar esses exportadores a repensarem as condições de trabalho. Não dá para enganar quem exige qualidade e muitos importadores estão interessados na qualidade. E agora, mais do que isso, estão pressionando o governo para a questão do fim do desmatamento e da preservação ambiental.
O governo está em uma sinuca. Não é política dele fazer preservação ambiental. Se tivesse o mínimo de honestidade quando fala de preservação ambiental, a primeira medida que deveria ser tomada é demitir o atual ministro do meio ambiente, o Salles. O do “passar a boiada”. Mas enquanto o Salles estiver a frente do Ministério do Meio Ambiente, fica óbvio, que o governo não pretende mudar sua política de devastação ambiental.
Os dados apontam que também haverá o aumento da fome em outros países. Qual o contexto global? Qual lógica está por trás desse processo, que permite que cheguemos a esse ponto tão extremo?
Em 2019, mais de 10 milhões de pessoas ingressaram em situação de fome no mundo. Hoje são 690 milhões de famintos em todo planeta. Isso representa 8,9% da população mundial. Com a pandemia, esse número pode ser acrescido de mais de 270 milhões até o fim desse ano. Nos últimos cinco anos, o aumento de famintos é de quase 60 milhões de pessoas.
A desnutrição tem aumentado pelo quarto ano seguido e hoje um a cada dez habitantes do planeta sobrevivem em insegurança alimentar. A FAO, órgão da ONU para qual eu trabalho, está prevendo que o coronavírus acrescente 132 milhões de pessoas ao número total de indivíduos subnutridos apenas esse ano, em consequência dos impactos provocados pela covid-19.
Hoje temos mais de 7 bilhões de habitantes dos quais 2 bilhões não têm acesso regular a alimentos nutritivos, de qualidade e quantidade suficiente. Cerca de 3 bilhões de habitantes, quase a metade da população global, não tem meios para manter uma dieta considerada minimamente equilibrada. Como por exemplo, ingerir quantidade suficiente de frutas e legumes.
Em média, uma dieta saudável custa cinco vezes mais do que uma dieta que só atinge as necessidades de energia com alimentos ricos em amido. Eles até engordam, mas não nutrem.
Nós temos muito amido como mandioca, que as pessoas repetem diariamente na alimentação porque não tem alternativa. Mas isso não tem as vitaminas, os nutrientes essenciais para uma saúde boa e uma dieta saudável.
A obesidade vem aumentando, tanto em adultos quanto em crianças. E muitas vezes por causa da fome [da ausência de alimentação de qualidade]. Uma alimentação saudável é inalcançável para 38% da população mundial, essas quase 3 bilhões de pessoas. Dessas, 104 milhões vivem na América Latina e no Caribe.
Quem mais sofre com a ausência de alimentação saudável são as crianças. Ano passado, 144 milhões de crianças abaixo de cinco anos foram atingidas pelo crescimento atrofiado. Enquanto outras 38 milhões estavam com excesso de peso.
A questão já era grave antes da pandemia, se agrava agora e realmente precisamos colocar isso às claras. Denunciar, propagar e pressionar o governo. Nos mobilizar para mudar essas políticas governamentais.
O senhor tem viajado para outros países enquanto assessor da FAO. Existem exemplos de combate à fome que poderiam ser seguidos?
Em quase todos os países existem experiências setoriais e locais muito interessantes. Mas tenho acompanhado mais de perto a experiência cubana. Cuba é um país sui generis. Primeiro que é o único país socialista da história do Ocidente. Segundo, é o único país socialista da América e do Caribe. E terceiro é uma ilha, não só no sentido geográfico mas também uma ilha econômica. Cortada, bloqueada e agredida permanentemente há mais de 60 anos pelo governo dos Estados Unidos.
Ali, toda a população, mais de 11 milhões de habitantes, tem seus direitos básicos totalmente assegurados. Alimentação, saúde e educação. Nenhum cubano passa fome.
Há um cartaz em Cuba que é muito emocionante. Quando você chega no aeroporto de Havana tem um outdoor com a foto de uma criança cubana sorrindo. E escrito o seguinte: essa noite, 200 milhões de crianças dormirão nas ruas do mundo. Nenhuma delas é cubana. E é verdade.
Em Cuba não existe isso. O governo toma providências, há tempos, de aprimorar a segurança alimentar. E agora tenho feito justamente um trabalho junto ao governo. Primeiro teve uma crise com a Queda do Mundo de Berlim. Cuba contava, na questão alimentar, com muita ajuda dos países da União Soviética. Depois Cuba contava com muita ajuda dos governos de esquerda da América Latina. Governo Lula e Dilma favoreceram muito a questão alimentar em Cuba.
O Brasil é um dos maiores produtores mundiais de alimentos e Cuba tem muita dificuldade. É um país que carece de recursos para ter a multiplicidade de alimentos que temos no Brasil. Para se ter uma ideia, em Cuba não tem sequer condições, como se tem aqui, de produzir energia elétrica. Não tem grandes rios, não tem cachoeiras. A energia elétrica é mantida a base do petróleo importado, uma importação cara.
Apesar disso, há uma cesta básica garantida mensalmente para cada uma das famílias cubanas. Depois que os países da América Latina começaram a perder governos progressistas, quem ajudava muito Cuba era a Venezuela. Mas com a crise com a Venezuela, cessou.
E aí entra esse programa que nós da FAO estamos desenvolvendo para fortalecer a soberania alimentar e a educação nutricional em Cuba. São muitas medidas, é muito interessante, mas isso é um assunto pra outra conversa.
Até mesmo a partir da sua atuação na ONU, como o Brasil está sendo visto lá fora? Qual a imagem do nosso país neste momento?
As pessoas adoram os brasileiros e brasileiros, a natureza, os que nunca vieram dizem que querem vir conhecer a Amazônia, o Pantanal, as praias. Agora, um horror ao governo. E a pergunta: “Como foi possível o povo brasileiro escolher um Bolsonero? O que aconteceu que de repente, depois de 21 anos de ditadura militar que vocês sofreram, como se explica isso?”.
E realmente daí o meu livro O diabo na corte. É uma tentativa de ajudar na análise desse fenômeno negativo na história do nosso país. Fica minha dica para os ouvintes e leitores.”O Diabo na corte” pode ser adquirido mais barato através do meu site.
O senhor mencionou que é muito improvável que o Brasil se mantenha fora do Mapa da Fome. Estamos de mãos atadas? O que fazer para reverter o quadro?
Estamos de mãos atadas pela dificuldade que a pandemia nos impõe de mobilização nas ruas. Mas temos que pressionar o Congresso, a mídia, fazer o que tiver ao alcance de cada um de nós. Agora depende do governo, não temos como improvisarmos. Claro que há iniciativas muito positivas como a do MST, nos assentamentos, mas elas são pontuais. Precisamos de medida de alcance nacional e isso tem que ser feito via governos, não tem outra maneira.
Estamos vendo um cenário cada vez mais graves em países que adotam o modelo neoliberal, mas em meio à pandemia houve orientações de entidades como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, que falaram sobre a importância de ajudar a população e da não realização de ajuste fiscal. O senhor acha que a pandemia mudou algum consenso?
Eu não confio nesse discurso. Acho que é um discurso demagógico que não chega a prática. Eles querem mesmo, cada vez mais, manter a economia dos nossos países asfixiada. O FMI está em pânico com a possibilidade do Fernandez, na Argentina, declarar moratória.
Há alguns governos percebendo que é importante aumentar as medidas de amparo social, de políticas sociais para os pobres e vulneráveis, até porque existe um detalhe nesse aspecto: assim como o vírus não faz distinção de classe, mas atinge majoritariamente o mais pobres, quanto maior a pobreza mais a possibilidade de novos vírus aparecerem. Agora a questão da miséria e da pobreza, além de ser uma questão social, econômica e política, se tornou uma questão sanitária. Isso realmente exige uma reflexão profunda de vários setores da sociedade.
Inclusive de alguns setores das altas finanças. Pode ser que dentro do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial haja diretores conscientes disso. Mas duvido muito que a instituição como tal vá mudar sua diretriz de defesa intransigente do capital privado e não dos direitos coletivos.
Qual a perspectiva para a população brasileira nos próximos anos sob o governo Bolsonaro?
Acho que primeiro temos a perspectiva dos próximos meses, que é votar bem nas eleições municipais. Votar em candidatos progressistas, éticos, comprometidos com os movimentos sociais, com os setores mais vulneráveis, com as minorias. Isso é muito importante que comecemos a nos mobilizar desde agora para mudar o perfil dos municípios. Votar em prefeitos realmente identificados com as demandas populares.
Avaliando as grandes necessidades, como os candidatos reagiram diante da pandemia. E, ao mesmo tempo, começar a preparar as forças políticas para evitar que o Bolsonaro seja reeleito ou aquele que o suceder, caso ele não chegue ao fim do mandato.
Ou seja: mudar totalmente esse governo militarizado que só veio agravar mais a situação dos direitos humanos e dos direitos em geral, trabalhistas e previdenciários, do povo brasileiro.