sexta-feira, 1 de fevereiro de 2019

A GENTE SE ACOSTUMA POR MARINA COLASSANTI

               A gente se acostuma a coisas demais na vida, e algumas dessas coisas acabam subtraindo a humanidade dos preciosos momentos que temos. A escritora e jornalista Marina Colassanti (“Rota de Colisão”, “E Por Falar em Amor”, “Intimidade Pública”) listou vários desses hábitos no texto “Eu sei, mas não devia“, hábitos que vão lentamente se acumulando com o tempo, como poeira, e com algumas decisões menores e aparentemente inofensivas acabam fazendo a gente se acostumar “a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora“, a “tomar o café correndo porque está atrasado“, e várias outras coisas. O texto segue abaixo acompanhado da bela leitura  de Antonio Abujamra. 
          Nem todas as coisas que a Marina Colassanti lista são assim passíveis de mudança, ou de imediata mudança. Algumas são simplesmente consequências das coisas como são, no estágio em que estão, ou de outras decisões que tomamos que tÊm suas implicações. Se quisermos ler o jornal, teremos as guerras lá e os números de fatalidades lá. Se quisermos morar numa cidade grande, teremos a poluição lá. Se quisermos trabalhar num certo lugar longe, teremos que dormir no metrô, ou ler livros no ônibus, etc. Tudo isso é possível de ser mudado — o jornal, a cidade, o lugar onde se trabalha — mas há graus de dificuldade diferentes para cada um de nós. O primeiro passo é a tomada de consciência, para sabermos quantas decisões levam a quantas circunstâncias que acabamos nos acostumando, e até onde estamos dispostos e temos por onde mudá-las.
Segue o texto, que faz parte do livro “Eu sei, mas não devia” (“EU SEI, MAS NÃO DEVIA” Por Marina Colassanti
                 Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

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