domingo, 18 de agosto de 2019

POESIA : MANOEL DE BARROS

MATÉRIA DE POESIA


A Antônio Houaiss (1974)
Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para a poesia
O homem que possui um pente
e uma árvore
serve para poesia
Terreno de 10x20, sujo de mato – os que
nele gorjeiam: detritos semoventes, latas
servem para poesia
Um chevrolé gosmento
Coleção de besouros abstêmios
O bule de Braque sem boca
são bons para poesia 
As coisas que não levam a nada
têm grande importância 
Cada coisa ordinária é um elemento de estima
Cada coisa sem préstimo
tem seu lugar
na poesia ou na geral
O que se encontra em ninho de joão-ferreira :
caco de vidro, garampos,
retratos de formatura,
servem demais para poesia
As coisas que não pretendem, como
por exemplo: pedras que cheiram
água, homens
que atravessam períodos de árvore,
se prestam para poesia
Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde
dos pássaros,
serve para poesia
 
As coisas que os líquenes comem
- sapatos, adjetivos -
tem muita importância para os pulmões
da poesia
Tudo aquilo que a nossa
civilização rejeita, pisa e mija em cima,
serve para poesia
Os loucos de água e estandarte
servem demais
O traste é ótimo
O pobre – diabo é colosso
Tudo que explique
     o alicate cremoso
      e o lodo das estrelas
serve demais da conta
Pessoas desimportantes
dão para poesia
qualquer pessoa ou escada
Tudo que explique
     a lagartixa de esteira
     e a laminação de sabiás
é muito importante para a poesia
O que é bom para o lixo é bom  para poesia 
Importante sobremaneira é a palavra repositório;
a palavra repositório eu conheço bem:
     tem muitas repercussões
como um algibe entupido de silêncio
      sabe a destroços
As coisas jogadas fora
têm grande importância
- como um homem jogado fora. 

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