sexta-feira, 12 de abril de 2019

LIVRO DE CONTO: ESTÓRIAS ABENSONHADAS - MIA COUTO



É um livro que traz um conjunto de 26 contos abensonhados...ou bem sonhados...cheio de bênçãos, lindos, poéticos , cheio de humor, criatividade e criticidade. Contos que entrelaçam realidade / fantasia e  nos conduz ao mundo pós guerra civil - 1992 em Moçambique. O livro foi lançado em 1994, dois anos após . Retrata temas os mais variados possíveis, como: esperança, renascimento,  morte, o fantástico..

            Nessas pequenas e curtas histórias o autor procura dar vazão ao sentimento de um povo que, mesmo diante de um cenário com tanta destruição e dificuldades, não se deixa desviar das suas tradições e nem perdem a fé na perspectiva de verem o seu país livre, transformado e restaurado.

            Assim é a introdução: “Estas estórias foram escritas depois da guerra. Por incontáveis anos as armas tinham vertido luto no chão de Moçambique. Estes textos me surgiram entre as margens da mágoa e da esperança. Depois da guerra, pensava eu, restavam apenas cinzas, destroços sem íntimo. Tudo pesando, definitivo e sem reparo.
            Hoje sei que não é verdade. Onde restou o homem sobreviveu semente, sonho a engravidar o tempo. Esse sonho se ocultou no mais inacessível de nós, lá onde a violência não podia golpear, lá onde a barbárie não tinha acesso. Em todo este tempo, a terra guardou, inteiras, as suas vozes. Quando se lhes impôs o silêncio elas mudaram de mundo. No escuro permaneceram lunares. Estas estórias falam desse território onde nos vamos refazendo e vamos molhando de esperança o rosto da
chuva, água abensonhada. Desse território onde todo homem é igual, assim: fingindo que está, sonhando que vai, inventando que volta.



Destacarei aqui 3 contos que me chamaram atenção!! Claro que a maioria dos contos são simbólicos e muito significativos. Vale à pena ler toda obra.



O CEGO ESTRELINHO:

Conta a história de um cego que tem um guia chamado Gigito e os dois já estão juntos há muito tempo.

“O cego, curioso, queria saber de tudo. Ele não fazia cerimônia no viver. O sempre lhe
era pouco e o tudo insuficiente. Dizia, deste modo:
Tenho que viver já, senão esqueço-me.
Gigitinho, porém, o que descrevia era o que não havia. O mundo que ele minuciava
eram fantasias e rendilhados. A imaginação do guia era mais profícua que papaeira. O
cego enchia a boca de águas:
Que maravilhação esse mundo. Me conte tudo, Gigito!”

Eles eram muito próximos e  até ao dormir, suas mãos se entrelaçavam; e para Estrelinho era como se fosse uma mão única. Gigito tinha uma imaginação muito fértil: contava histórias que não existiam e descrevia o mundo que não existia.
O cego acreditava piamente neste mundo que o guia contava pra ele.



“A mão do guia era, afinal, o manuscrito da mentira. Gigito Efraim estava como nunca
esteve S. Tomé: via para não crer. O condutor falava pela ponta dos dedos. Desfolhava
o universo, aberto em folhas. A ideação dele era tal que mesmo o cego, por vezes,
acreditava ver. O outro lhe encorajava esses breves enganos:
Desbengale-se, você está escolhendo a boa procedência!”

Eles estavam vivendo em plena guerra civil em Moçambique e Gigito foi convocado para  prestar os serviços militares, então quando Estrelinho soube da notícia se afundou na depressão, pois o seu grande amigo iria para guerra e só Deus sabe se voltaria. Gigito ficou tão triste que até  desejou morrerO cego reclamou: que o moço inatingia a idade. E que o serviço que ele a si prestava era vital e vitalício. O guia chamou Estrelinho à parte e lhe tranquilizou:
“— Não vai ficar sozinhando por aí. Minha mana já mandei para ficar no meu lugar.”

O nome da irmã de Gigito era Infelizmina, pois esta era infeliz por natureza. O cego Estrelinho também é um nome rico de significados, pois estrela é um ser que brilha, e antes de Gigito ir para guerra ele era um ser iluminado e feliz. Agora, temos 2 infelizes juntos.

Olhem como Felizmina é retratada :

“— Sou irmã de Gigito. Me chamo Infelizmina. Desde então, a menina passou a conduzir o cego. Fazia-o com discrição e silêncios. E era como se Estrelinho, por segunda vez, perdesse a visão. Porque a miúda não tinha nenhuma sabedoria de inventar. Ela descrevia os tintins da paisagem, com senso e realidade. Aquele mundo a que o cego se habituara agora se desiluminava. Estrelinho perdia os brilhos da fantasia. Deixou de comer, deixou de pedir, deixou de queixar.”

Depois deste momento, ela começa a ter um contato mais íntimo com Estrelinho e os dois tem uma relação de amor, até que eles recebem a notícia de que Gigito havia morrido na guerra. Agora, quem fica na pior é Felizmina, mas como o seu companheiro não esquecera da imaginação fértil de Gigito, começou a contar histórias para que sua amada saísse daquela situação.

“A partir dessa morte ela só tristonhava, definhada. E assim ficou, sem competência para reviver. Até que a ela se chegou o cego e lhe conduziu para a varanda da casa. Então, iniciou de descrever omundo, indo além dos vários firmamentos. Aos poucos foi despontando um sorriso: amenina se sarava da alma. Estrelinho miraginava terras e territórios. Sim, a moça, se concordava. Tinha sido em tais paisagens que ela dormira antes de ter nascido. Olhavaaquele homem e pensava: ele esteve em meus braços antes da minha atual vida. Equando já havia desenvencilhado da tristeza ela lhe arriscou de perguntar:
Isso tudo, Estrelinho? Isso tudo existe aonde?
E o cego, em decisão de passo e estrada, lhe respondeu:
Venha, eu vou-lhe mostrar o caminho!”



CHUVA :  A ABENSONHADA

A narrativa tem como fio condutor a coincidência cronológica entre o término dos períodos da guerra e da estiagem (fatos que deixaram toda nação fragilizada); enquanto estes elementos destruíram a terra e os homens , eis que surge a chuva. Neste conto observamos a poeticidade e criatividade do escritor. Fala sobre o retorno da chuva que cai intensamente há três dias  num povoado que precisava muito desta água abensonhada. Observe a descrição que ele faz do lugar, seus sentimentos e emoções... A  chuva é a maior bênção que a terra pode receber.

Estou sentado junto da janela olhando a chuva que cai há três dias. Que saudade me
fazia o molhado tintintinar do chuvisco. A terra perfumegante semelha a mulher em
véspera de carícia. Há quantos anos não chovia assim? De tanto durar, a seca foi
emudecendo a nossa miséria. O céu olhava o sucessivo falecimento da terra, e em
espelho, se via morrer. A gente se indaguava: será que ainda podemos recomeçar, será
que a alegria ainda tem cabimento?”

 Para tia Tristereza este fato traz recado dos espíritos. É como estivesse limpando todo o sangue derramado na guerra, logo,  lavando  dores, mágoas e trazendo bons agouros , por isto ser uma chuva abençoada e cheia de sonhos.

“— Nossa terra estava cheia do sangue.(...) a água sabe quantos grãos tem a areia. Para cada grão ela faz uma gota. Tal igual a mãe que tricota o agasalho de um ausente filho.”

Observamos a força da Natureza e da ação humana reordenando um novo tempo, embora o sobrinho desconfie sobre a ação da natureza, sobre a quantidade e duração das chuvas, se realmente são benéficas ou de consequências danosas como a longa seca. Segundo este: “Mas dentro de mim persiste uma desconfiança: esta chuva, minha tia, não será prolongadamente demasiada? Não será que à calamidade do estio se seguirá a punição das cheias?” (...) “E volto a interrogar: não serão demasiadas águas, tombando em maligna bondade?

A tia tem outra explicação para a chuva que cai sem cessar, algo sobrenatural e mágico.

“A voz de Tristereza se repete em monotonia de chuva. E ela vai murmurrindo: o senhor, desculpe a minha boca, mas parece um bicho à procura da floresta. E acrescenta:— A chuva está limpar a areia. Os falecidos vão ficar satisfeitos. Agora, era bom respeito o senhor usar este fato. Para condizer com a festa de Moçambique.”

No final, ela pede para que ele não sacudir  os pingos de  chuva que estavam em seu casaco, pois esta aguinha dá sorte. Que sensibilidade e poeticidade!!! Lindooooo!!!!



O CACHIMBO DE FELIZBENTO



Percebemos que os personagens criados por Mia Couto, em praticamente, todas as suas obras, recebem nomes que não são isentos de importância semântica. Sempre carregam diferentes possibilidades de sentidos e múltiplos significados.        Observe o nome deste personagem: Felizbento .  A junção de “feliz” + “bento” pode remeter ao significado de que, em sua casa, no seu espaço amoroso, o velho sente-se realizado, feliz e abençoado. E as mesmas características podem ser atribuídas ao lugar, que antes da chegada das milícias era feliz e bento.  Sua casa é um espaço de afeto, de aconchego, de proteção, desde o nascimento do homem; é  simbolicamente seu paraíso material. O que nos leva a inferir que apenas ali, nesse seu lugar especial, que ele pode ser “feliz” e “bento”. As lembranças da casa estão guardadas na memória, no inconsciente e acompanham-nos durante toda a vida e, sempre voltamo-nos a elas em nossos devaneios. Na imaginação do velho morador está firmada a imagem do espaço, processada nos valores de abrigo, de aposento, de ninho.

A personagem, ao ser chamada para a guerra, decide levar com ele as árvores do seu quintal. Essa imagem é muito expressiva, pois a árvore representa sua origem, a pátria. E percebendo que não pode levar as árvores decide fugir e se esconder dentro dum buraco escavado entre as raízes, para voltar a sua origem, à terra.

“Aquele chão ainda estava a começar, recém-recente. As sementes ali se davam bem, o verde se espraiando em sumarentas paisagens. A vida se atrelava no tempo, as árvores escalando alturas. Um dia, porém, ali desembarcou a guerra, capaz de todas as variedades da morte. Em diante, tudo mudou e a vida se tornou demasiado mortal.”

               A esse respeito, podemos inferir que, para Felizbento, suas árvores, seu quintal, sua casa são o “seu lugar no mundo” e este espaço, este lugar, não é como qualquer outro, e, por isso, atribui a eles um valor que se traduz como sagrado, estes espaços definitivamente se diferenciam do todo, transcendem tudo aquilo que poderíamos chamar de comum ou de banal. O velho morador, portanto recusa-se a abandoná-lo para deixar alguém que vem de fora viver ali, ocupar-se daquele espaço sagrado.

“— Se vou sair daqui tenho que levar todas essas árvores.
O nacional funcionário economizou paciência e lhe disse que, mais semana, eles
voltariam para o carregarem, nem que fosse à bruta força. E foram.
No dia sequente, o homem pôs-se a desenterrar as árvores, escavando pelas raízes.
Começou pela árvore sagrada do seu quintal. Trabalhou fundo: lá onde ia covando já se desabria um escuro total. Para dar seguimentos na fundura passou a levar um petromax, desses que trouxera do Johnne. E tempo após tempo, se demorou nesse serviço.”

É muito difícil para o velho ir-se embora, morar em outro local.  “Toda construção e toda inauguração de uma nova morada equivalem de certo modo a um novo começo, a uma nova vida” sendo assim, nesse outro local para onde seria enviado, Felizbento teria que retornar ao início, retomar e reconstruir um espaço sagrado, e isso não lhe interessa agora. Por essa razão reluta tanto a partir. O seu quintal e a sua casa são, para o personagem, o seu abrigo mais seguro, ou o único abrigo; sair de lá significa, também, enfrentar o desconhecido e seus perigos. A casa, através da sua representação simbólica, possibilita ao homem um enraizamento mais profundo na vida, concedendo-lhe estabilidade, constitui uma das maiores forças de integração na vida do sujeito. Sendo assim, ela abriga o devaneio, protege o sonhador, permitindo-lhe sonhar em paz, pois em seu interior se encontram os “espaços felizes”. Desse modo, “habitar não significa estar abandonado em qualquer lugar de um mundo hostil; mas significa estar abrigado graças ao amparo da casa. Portanto, a casa tem um significado muito abrangente.

                A esposa de Felizbentoq  se aborrece com a insistência do marido em mergulhar de corpo e alma nessa missão de desenterrar as árvores, deixando-a de lado. Ela elabora um plano para tentar dissuadi-lo: se arruma com “a saia de flores, os sapatos de bico e ponta” a fim de chamá-lo de volta à vida de outrora “imitando os tempos em que seus corpos desacreditavam ter limites”. Felizbento fica surpreso e deixa-se enredar, mas é despertado quando, com o sapato de ponta, a esposa pisa no seu pé descalço fazendo-o acordar do enlevo. O plano da esposa fracassa e Felizbento retoma a labuta envolvendo-se exclusivamente em seu esforço de desenterrar as árvores. Após um longo tempo, o marido retorna à superfície e pede à esposa que lhe prepare sua roupa mais solene e seus sapatos: “pediu à mulher que lhe desmalasse o fato, preparasse a devida roupa, engomasse os tirilenes”. Há, nessa passagem, a impressão de situação derradeira e definitiva. Porém, os sapatos já não lhe cabem, pois “seus pés tinham tomado a disforme forma da descalcidão”. Calça-os mesmo assim e arrastando-os pelo chão vai entrando mais uma vez na terra, “dobrado como caniço, nessa infância que só na velhice se encontra”. E, antes de adentrar, definitivamente, na terra sagrada: “Foi entrando na terra e só
uma vez se virou. Não para as despedidas mas para remexer nos bolsos um
esquecimento. O cachimbo! Remexeu os interiores da roupa. Tirou o velho cachimbo e
revirou-o sob a luz trémula do candeeiro. Depois, com gesto desanimado, atirou-o fora. Era como se atirasse toda a sua vida.”

Felizbento entra, irrevogavelmente, no buraco profundo feito por ele próprio no seu quintal, transforma-se em árvore, integra-se, funde-se assim ao seu espaço.

“Ainda hoje a mulher se debruça na cova e chama por ele. Mas sem gritar. Doce como
se chamasse uma pessoa adormecida. Ainda ela usa o vestido das flores, sapatos de
ponta e o cheiro com que, em desesperança, ainda tentou a tentação de Felizbento.
Depois ela se recolhe, apagada. Só os olhos, em redonda insistência, semelham coruja
com insnia. Que sonhos convidam aquela mulher a existir?”

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