Durante a pandemia de Covid-19, o biólogo e escritor moçambicano Mia Couto discorreu para o jornal Estado de Minas algumas reflexões sobre este momento de confinamento, medos e incertezas.
Para ele a reclusão não é nada inspiradora a partir do momento que a sua volta há miséria e desemprego.
Uma questão sempre levantada durante este período de confinamento é se as pessoas sairão da quarentena mais solidárias, mas o escritor não está tão otimista assim.
A desumanização
Para ele, o problema nunca foi o ser humano, mas os fatores de desumanização contidos nos modelos de fazer economia e política. A defesa cega e implacável do modelo neoliberal que destrói o Estado em prol do mercado financeiro.
Mia Couto questiona por que se despreza tanto os setores de educação e saúde.
“A maioria dos que escolheram lideranças imbecis muito provavelmente continuará apoiando no futuro essas lideranças populistas e demagógicas. O medo não ajuda a vencer a mentira. Pelo contrário, o medo fundamenta a escolha de soluções messiânicas. “
Como de costume, “os salvadores da pátria” adoram o medo e ele complementa:
“O Brasil tem uma experiência dolorosa nesta produção de um poder que vive da eternização da crise e da permanente polarização que mantém o país numa espécie de estado de guerra.”
A empatia pelo obscuro
Ele acredita que as “elites do atraso” e seus seguidores não têm falta de empatia, mas tem a empatia pelo o que é obscuro como: a negação da ciência, do diálogo em prol do autoritarismo.
Alinhando-se ao pensamento do filósofo italiano Domenico de Masi, Mia Couto acredita que devemos repensar nossa relação com a natureza.
“Nós, com as nossas cidades, somos também a natureza. O vírus que nos atingiu é parte dessa natureza. Aliás, uma das razões que levaram a desvalorizar o estudo dos vírus foi a nossa visão antropocêntrica do que é importante no mundo natural. Muito pouco sabemos dessa criatura invisível que virou o mundo do avesso. “
Segundo o biólogo, estas criaturas invisíveis chamadas de micro-organismos, que por mais que nos custe admitir, são eles que controlam a existência e a evolução da vida. Não somos nós. Essas criaturas estão, nesse sentido, mais próximas de Deus do que nós.
Ser produtivo e ser contemplativo
Para o escritor, países como Moçambique, onde grande parte das famílias vivem no limiar da pobreza, não existe essa divisão entre um passado produtivo e um presente contemplativo por conta da pandemia.
As famílias mais pobres não têm esse direito à contemplação. Grande parte da sociedade sobrevive da economia informal, que ainda continua invisível aos olhos dos governantes.
Para ele, a doença veio para escancarar as diferenças gritantes entre as classes sociais e espera que a maioria entenda que é preciso fazer mudanças radicais.
“Não se trata mais de escolher pessoas diferentes nas eleições. Trata-se de apostar numa nova ordem em que as instituições do Estado não sejam conduzidas pelos desígnios do mercado. “- afirma.
Aprendendo a lição
Para ele, outras pandemias virão e é preciso estar atentos para reagir de maneira eficaz.
“Uma das razões por que há pessoas portadoras deste vírus é a resposta desproporcionada do nosso sistema imunitário. O mesmo se passa com a resposta a nível da sociedade: o único remédio que nos resta (o isolamento) provoca consequências econômicas e sociais terríveis. “
A cooperação também deve ser levada em conta, pois laboratórios e empresas têm trocado informações, enquanto que antes, tudo era mantido em sigilo, pois era “a alma do negócio”.
Um outro aprendizado é fazer com que as pesquisas científicas atendam às demandas da humanidade e não foquem no lucro imediato.
Para ele, é possível que passemos a valorizar de maneira justa determinados profissionais, que durante a crise desta pandemia mostrou a humanidade de suas profissões como: catadores de recicláveis, profissionais da saúde e jornalistas.
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