Quando você me ajudava a sair de uma saia justa com um comentário despretensioso que só você sabia tirar da manga ou quando topava tomar um spritz sentado nas pedras em frente àquele lago só para me agradar, eu dizia: “O que seria de mim sem você?”.
Um dia, lá no início, a gente discutia um tópico qualquer e então você pegou uma revista da mesa, virou de lado, pegou sua indefectível caneta do bolso da camisa e escreveu na margem o teu termo do debate. Parei e disse: “Você escreve em grego antigo? Para tudo, concordo com qualquer coisa, fala em grego antigo, agora”. Você riu: “Fiz tudo para conquistar essa mulher, se soubesse que bastaria ter escrito essas simples palavras...”.
Na conversação que era nossa vida, o grego, a filosofia, o teatro, enfim, as ideias e práticas antigas sempre estiveram presentes. Transmitimos um pouco disso nos dois livros que fizemos. Até escolhemos uma expressão em grego para eu fazer uma tatuagem, que a pandemia adiou. Como tantas coisas que ela adiou. Enfim, com grego, latim, italiano, inglês, francês, português... A embocadura e as palavras podiam ser salvadoras. O que seria de mim sem você?
Você respondia: “Onde você estava que não te achei antes? Diz, diz”. Me dava uns empurrões e falava: “Você vai apanhar por ter fugido todo esse tempo”. E a gente ria.
Eu dizia: “Você pode gritar aos quatro cantos que é cafona e dar as palestras e fazer os livros que você quiser, mas estou muito feliz” (na verdade eu dizia: “Estou feliz ‘pa’ caralho”). Isso até se tornou piada entre nós. Z perguntava, nos momentos mais diversos, para te pegar: “Tá feliz?”. Você negava e ria. “Feliz? Que coisa brega.” Fala CC, de 0 a 5, quanto você está feliz? “Eu até podia estar, mas agora que você perguntou, -3.” E, de repente, talvez um domingo de manhã, depois de anos nessa batalha, você assumiu. Foi tão inusitado que a gente até fez (tentou fazer) um vídeo desse momento histórico.
Até que um dia, esses dias, eu repeti a minha pergunta, e num outro tom: “O que vai ser de mim sem você?”. Já tínhamos tido, claro, longas conversas sobre o futuro e essa espera angustiante da morte. Com humor, com tranquilidade, com lágrimas absurdas. Às vezes com revolta (ma che merda!), às vezes com aceitação radical (c’est la vie).
Cada um vive a morte à sua maneira. A inexoravelmente solitária forma de cada um ter seu corpo e seu ser sendo atravessados pela morte. A morte de quem morre e a morte de quem fica. Na véspera, a
pergunta era séria e talvez sem resposta: o que vai ser de mim sem você? Você estava consciente, olhou no meu olho e disse: “Vai ser o que você quiser”. Parei de chorar naquele instante. Olhei atônita: você conseguia ser analista até debaixo d’água. Você ofertava ao outro uma palavra para ele seguir. E conseguia ser fiel ao seu mais caro princípio até o final: crie sua vida. Esse é o sentido que ela tem e que você criará para ela.
Essa é uma das grandes viradas da civilização. Começou lá atrás, pelos gregos, há milênios, e foi reafirmada pelos modernos, há séculos. Mas ainda temos muito medo de bancar essa posição até o final.
Isso tem a ver com a tua tese (um dia quem sabe a ser publicada), teus livros, tuas obras e tuas falas. Toda a tua vida, enfim. E que ficava cada vez mais claro para você, como conversávamos tantas vezes. A crítica do clichê, da lógica de massa e da quase inevitável boçalidade do grupo; a busca pela afirmação radical da subjetividade, autoral, e um outro projeto de país, de planeta. Você vai ser o que você quiser. Vale para mim, sua mulher, isso vale para todos nós.
No dia seguinte, naqueles instantes que ficarão para sempre inesquecíveis, falei na sua orelha tudo o que eu quis. Até que ficou tudo calmo. Sozinha no quarto, continuei deitada ao seu lado, e continuei falando. Ainda não sei o que vou querer ou o que vou conseguir inventar de mim mesma. Sei que a tatuagem e as cicatrizes serão inevitáveis, e o que te falei seguirá valendo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário