TORTO ARADO
A trama se passa no sertão baiano, em Água
Negra, habitavam várias famílias. A maioria era negra e outras se diziam “índios”. Algumas dessas famílias chegaram há
pouco, outras estão chegando; e outras ainda, estão lá há algumas
gerações… Na obra se observa o clima de
atemporalidade, embora dê dicas de que tudo parece acontecer a partir da década
de 70, 80 do século XX. Notamos que mesmo com a passagem dos séculos, muitos
temas não foram consolidados, como: violência, fome, desigualdade
social, seca, preconceito, intrigas
familiares, machismo, violência contra a mulher, menores violadas, disputa de poder, assassinato pela posse da
terra, novas formas de escravidão no Brasil pós-abolicionista, lutas sindicais. ...e
o país em pleno século XXI sangra até hoje das mesmas feridas.
A obra é dividida em três partes:
Primeira
Parte: Fio de corte
Narrada por Bibiana,
ao assumir a observação
dos acontecimentos que, por vezes, até confundem-se com uma narradora
onisciente, retrata a
história de uma fazenda do interior da Bahia, na região conhecida como Chapada
Diamantina; a região tem este nome porque no tempo do Império descobriram
fontes de diamantes. Podemos imaginar a quantidade de pessoas que imigraram
para lá afim de reconstruir suas vidas. Embora no contexto narrado não temos
mais diamantes, mas se conservou fazendas e uma terra fértil, pois é uma região
de serrado cortada por rios importantes com boa fertilidade. Numa fazenda
chamada Água Negra, que é cortada pelo rio Utinga e Santo Antônio, vivem uma
comunidade de trabalhadores da qual fazem parte duas irmãs: Belonísia e
Bibiana. São muito próximas, pois a diferença de idade é de meses, porém num
determinado dia, acontece algo muito trágico que vai marcar suas vidas. Elas
abrem uma mala da avó para observar uma faca misteriosa com um belo cabo de
marfim. O brilho do metal, as formas do objeto, encantam as meninas que o
colocam na boca. Ocorre, então, o acidente que dará sentido ao romance. O
mistério para a existência daquela faca será esclarecido mais no final do
livro. Bibiana corta a boca seriamente, e Belonísia decepa a língua, o que a
impede de falar. Na obra, ao longo dos anos, as irmãs vão
seguir trajetórias que em algum momento se afastam, em outros, se unem. Estes
fatos vão dar sentido para que elas contem em suas narrativas a história desta
comunidade de trabalhadores rurais que vivem numa situação análoga à
escravidão. Eles trabalham de sol a sol dentro das terras de uma família de
fazendeiros e não têm direito ao salário e a única coisa que recebem em troca é
o direito de morar lá, direito de ter um pedaço de chão para construir uma
casinha de barro, pois eram impedidos de edificarem casas de alvenaria. Não recebiam salários e não tinham nenhum
tipo de proteção. Ignorados pelo estado, pois não sabiam ler nem escrever, pois
a maioria nascia e morria sem tirar documentos...a maioria usava dinheiro...o
máximo que conseguiam era: escondidos do capataz da fazenda ir à feira em alguma cidade mais próxima
vender algo, como: azeite de dendê que eles mesmos extraíam. Bibiana vai ganhando uma
consciência política crescente. É nesta parte que também aparece os primeiros indícios
de um pensamento mais politizado, que se revelará mais para a
frente. Quando Bibiana sabe de
sua gravidez com o seu primo Severo e vê tudo o que motiva sua fuga com o primo Severo,
“Somente
uma das filhas teria a fala e a deglutição prejudicadas. Mas o silêncio
passaria a ser nosso mais proeminente estado a partir desse evento.” pág 19
“Nos primeiros meses após
perder a língua fomos tomadas de um sentimento de união que estava embotado com
aquele passado de brigas e disputas infantis (...) Uma seria a voz da outra.
Deveria se aprimorar a sensibilidade que cercaria aquela convivência a partir
de então. Ter a capacidade de ler com mais atenção os olhos e os gestos da
irmã.” Pág 23
Segunda Parte: Torto Arado
Neste segundo momento
quem narra a história é BELONÍSIA. Uma mulher que tem uma conexão enorme com a
terra, com a Natureza. Sua sabedoria mostra-se relacionada aos
conhecimentos ancestrais ignorados pela chamada Ciência Moderna dos “homens
civilizados” , Belonísia demonstra a insubordinação diante dos movimentos de
exploração que não sabia exatamente como nomear, mas os quais reconhecia e
enfrentava. Ao se casar com Tobias, encontra-se em uma situação muito pior do
que a vivida na casa de seus pais, mas se vê inexplicavelmente impedida de
escapar de seu infortúnio.
“Com Zeca
Chapéu Grande me embrenhava pela mata nos caminhos de ida e de volta, e
aprendia sobre as ervas e raízes. Aprendia sobre as nuvens, quando haveria ou
não chuva, sobre as mudanças secretas que o céu e a terra viviam. Apprendia que
tudo estava em movimento – bem diferente das coisas sem vida que a professora mostrava em suas aulas. Meu
pai olhava para mim e dizia: “o vento não sopra, ele é a própria vibração”, e
tudo aquilo fazia sentido. “Se o ar não se movimenta, não tem vento, se a gente
não se movimenta, não tem vida”, ele tentava me ensinar. Pág.99
Belonísia,
antes aparentemente frágil, demonstra que sua força de mulher é resistente como
a terra e suas raízes, acolhendo outra mulher vítima de violência. Finalmente
demarca-se a posição de enfrentamento em relação ao próprio marido:
“Tentava
entender o que ele dizia, e sem chance de me proteger, o prato veio na minha
direção. Olhei para o chão e vi a comida espalhada. Aquele chão onde havia
curvado meu corpo para varrer e assear com zelo. Senti raiva naquele instante,
perguntei a mim mesma quem aquele vaqueiro ordinário pensava que era. Pág.120
Belonísia agia com o vigor da terra em memórias das nações africanas nas quais
a mulher é respeitada, assim como o foram suas mãe e avó: “Mas
eu já me sentia diferente, não tinha medo de homem, era neta de Donana e filha
de Salu, que fizeram homens dobrar a língua para se dirigirem a elas.”
pág 121
Assim,
permanecia em luta: “Que se
atrevesse a vir me agredir que faria o mesmo com sua carne: a faria soltar da
face com um golpe apenas. Antes que qualquer homem resolvesse me bater,
arrancaria as mãos ou cabeça, que não duvidassem de minha zanga” pág.121.
Terceira Parte: Rio
de sangue
Na terceira e última
parte, o autor introduz mais uma força feminina para tomar conta da narração.
Santa Rita Pescadeira, que desde o início aparece no jarê por meio de dona
Miúda, conduz a resolução dos mistérios em meio à polifonia. A entidade vaga
sobre a fazenda, que já não é mais a mesma. O abandono enrustido de liberdade é
cada vez mais evidente. Após a perda de duas lideranças, os moradores de Água
Negra estão dispostos a lutarem pelo o que pertence a eles por direito, pelo
pedaço de terra que sempre cuidaram e cultivaram. E na linha de frente estão as
irmãs e a encantada, as três potências femininas que impulsionam o romance.
Cada mulher sabe a força da
natureza que abriga na torrente que flui da sua vida. (página 260).
Belonísia era a fúria que havia
cruzado o tempo. Era filha da gente forte que atravessou um oceano, que foi
separada de sua terra, que deixou para trás sonhos e forjou no desterro uma
vida nova e iluminada. Gente que atravessou tudo, suportando a crueldade que
lhes foi imposta. (página
261)
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