Os recentes acontecimentos políticos que envolveram o Afeganistão e os Estados Unidos protagonizaram as notícias das últimas semanas. As redes sociais se encheram de informações relacionadas à situação das mulheres no Afeganistão por serem entendidas como principal alvo da perda de direitos civis, políticos e sociais.
Para começar a entender a experiência das mulheres afegãs, é essencial partir do discurso das próprias afegãs que se propõem a defender os direitos das mulheres através do seu trabalho. As artistas listadas aqui partem de diferentes linguagens e processos artísticos para manifestar suas convicções políticas, religiosas e conceituais.
SHAMSIA HASSANI
Shamsia Hassani foi a primeira mulher a desenvolver a linguagem do grafite no país. A artista estudou na Universidade de Cabul e passou a grafitar na cidade. Seu trabalho tem uma estética própria que fazem seus traços e motivos serem reconhecíveis à distância. Parte, na maioria de suas composições, da figura feminina em cenas lúdicas, coloridas e com intenso movimento.
A metalinguagem trazida na inserção de elementos musicais como pianos e teclados também se manifesta na referência ao cinema quando o cabelo das personagens, soltos ao vento, se transformam em negativos de filmes.
Além de spray, a artista usa pincéis no delineado dos contornos e caneta branca que dá o tom de luminosidade para as figuras.
A série “Dreaming Graffiti” traz um outro processo criativo. Shamsia Hassani fotografa algumas construções de prédios em Cabul e pinta sobre essas fotografias. Essa foi uma saída que encontrou para evitar a hostilidade de grupos que reprovam o grafite na cidade. Em algumas cenas é possível entender a opressão pela qual as mulheres passam quando sob governos extremistas, demonstrando como a individualidade pode ser suprimida.
MALINA SULIMAN
A artista começou seu contato com artes quando tinha 20 anos na cidade de Kandahar no Afeganistão, posteriormente indo estudar Fine Arts no Paquistão. Experimentando em diferentes linguagens e formatos, a artista desafia algumas leituras religiosas e culturais impostas pelo Talibã. No grafite, começou produzindo por pouco tempo em Kandahar, devido à não aceitação dessa linguagem pelo público, tendo, inclusive, que se mudar para a Índia por receber ameaças do Talibã, direcionadas a ela e sua família.
Seu trabalho inclui não só o grafite como pintura mural, mas pinta caligrafias em tecidos de burca e registra em vídeo o choque cultural entre seu país natal e outros países da Europa.
Em entrevista à CNN, a artista menciona o quanto sua arte é acessada predominantemente por homens e expressa seu desejo de ampliar e encorajar o envolvimento das mulheres com a arte e seus direitos civis. O que não significa buscar o estilo cultural do ocidente, mas equalizar os direitos de gênero dentro da própria cultura islâmica.
Na obra “Girl in the Ice Box” há o sentimento de estar presa dentro de uma caixa, congelada e impedida de agir. O trabalho faz referência ao período em que a artista voltou da Índia para o Afeganistão e não podia sair de casa por medo de sofrer mais ameaças.
Suliman defende os direitos das mulheres de ter acesso à educação, ao pensamento crítico e de exercer seus desejos, reforçando que a liberdade não deve estar apoiada ao código de vestimenta, já que o uso do véu faz parte de sua cultura.
MOSHTARI HILAL
O trabalho de Hilal desconstrói o padrão de beleza ocidental e celebra as características físicas com as quais a artista cresceu, como os longos cabelos pretos e o nariz proeminente. A artista questiona os processos estéticos dolorosos pelos quais as mulheres são ensinadas a passar em vista de transformar a natureza de seus corpos e se assemelhar ao padrão europeu de beleza e aceitação.
A artista fala abertamente sobre a depilação, auto aceitação, desenvolvimento sexual e a insegurança trazida pela rejeição ao próprio corpo e dos próprios pelos. A partir dessa experiência que a artista entende como coletiva e que perpassa a vida de muitas mulheres, ela constrói seus desenhos salientando esses detalhes do corpo numa celebração de sua individualidade, incentivando outras mulheres a se apropriar de sua própria identidade.
Seu processo artístico a levou a estudar seu rosto, suas expressões e suas origens. Pelos faciais, pelos nos braços e nas pernas estão presentes nos retratos numa postura inversa ao apagamento e ridicularização sofridos ao longo da infância e adolescência.
Os traços de seus desenhos são todos bem marcados, onde podemos identificar todas as linhas que compõem a cena, desde o fundo preenchido até os pormenores do rosto, o que traz a sensação de pertencimento e acolhimento da figura no espaço.
ROBABA MOHAMMADI
Trabalha com pintura a óleo e retrata a partir de uma estética sombreada o cotidiano dos afegãos. Fundou o Robaba Cultural and Art Centre in Kabul para aumentar o impacto da arte na comunidade local, partindo de um projeto de inclusão de pessoas com deficiência. Ela defende que é preciso aumentar o acesso e os programas educacionais no país, uma vez que a maioria das escolas não é adaptada para PCD, o que torna grande parte dos afegãos com deficiência iletrados.
Quando representa pessoas com deficiência, traz cenas bastante intensas em cor que celebram a vida e a individualidade dos personagens. Traz, inclusive, referência do grafite, onde representa a famosa menina com balão de Banksy, mas aqui representa os balões fazendo a menina sair da cadeira de rodas e levitar pelo céu.
BOUSHRA ALMUTAWAKEL
Ainda que não seja afegã, o trabalho da artista iemenita caminha pelos mesmos debates das artistas apresentadas até aqui: a liberdade feminina e seus direitos.
Algumas de suas fotografias viralizaram nas redes sociais nos últimos dias, acompanhadas de críticas acerca do Islã como cultura e religião extremista. É comum que no ocidente se encontre leituras descontextualizadas sobre as culturas presentes no oriente. O uso do hijab ou de qualquer um dos tipos de vestimenta da cultura islâmica é visto por si só como símbolo de opressão. Almutawakel, entretanto, explica em entrevista à BBC.:
algumas pessoas usaram meu trabalho para mostrar como as mulheres muçulmanas estariam sendo oprimidas. E meu trabalho não é sobre o Islã, é sobre extremismo. É sobre a misoginia patriarcal, que não é encontrada apenas no mundo árabe e muçulmano, está em toda parte.
As fotografias formam uma narrativa onde se vê gradativamente as mulheres sendo cobertas por roupas cada vez mais fechadas ao ponto de finalmente sumir de cena.
A questão levantada pela artista é a invisibilização das mulheres quando há grupos fundamentalistas, como o Talibã, no controle de um país. Os direitos das mulheres, como se viu na história recente do Afeganistão, foram reduzidos e controlados. O tecido usado na fotografia foi um apelo estético ao conceito de invisibilização e à obrigatoriedade de qualquer vestimenta em si que busca o apagamento das mulheres. Mas a artista não é contra o uso do véu em si, inclusive aponta que quando debatemos sobre o véu, perdemos tempo precioso que poderíamos usar para pensar os direitos reais da vida civil das mulheres, como as oportunidades de educação, de escolha de carreira e da liberdade de ir-e-vir livremente.
Esse caso nos mostra que é recomendável que o entendimento para qualquer produção artística, desde artes plásticas até a literatura ou a música, seja consciente no que toca à entender as especificidades de cada contexto no qual foi criado.
As artistas apresentadas aqui, se assemelham às artistas do movimento feminista internacional que lutam pela igual oportunidade entre gêneros e demonstram que a resistência não é própria de apenas uma nação.
É, na verdade, uma reação ao patriarcado praticado em sociedades pelo mundo inteiro. Ao iluminar esses debates, é possível perceber mais coisas em comum do que as diferenças culturais que nos acostumamos a apontar quando o assunto é o oriente. Talvez seja esse o papel da arte.
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Victoria Louise é crítica e produtora cultural, formada em Crítica e Curadoria e Gestão Cultural pela PUC-SP
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